Postagens com cápsula vazia não provam “conspiração” de prefeitos contra cloroquina

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  • Publicado em 13 de agosto de 2020 às 20:55
  • Atualizado em 14 de agosto de 2020 às 15:22
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  • Por AFP Brasil
Publicações compartilhadas mais de 11,2 mil vezes nas redes sociais desde o último dia 7 de agosto afirmam mostrar uma cápsula de cloroquina aberta, aparentemente vazia, distribuída por alguns prefeitos para “provar” que este medicamento não funciona contra o novo coronavírus. A imagem, na verdade, foi retirada de um vídeo que mostrava ivermectina, entregue em uma ação realizada por empresários no Mato Grosso, em parceria com um hospital privado.

“A canalhice de alguns prefeitos: Comprimidos de Cloroquina esvaziados só para tentar ‘provar’ que a terapia não funciona”, diz o texto que acompanha a imagem do medicamento aberto, que viralizou no Facebook (1, 2, 3), Twitter (1) e Instagram (1, 2, 3) desde o início de agosto.

Por vezes, algumas postagens são acompanhadas de uma captura de tela em que se vê nome do usuário @blogdojefferson, sugerindo que a publicação seria de Roberto Jefferson, presidente nacional do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), com a seguinte legenda: “Abram, chequem e se possível, guardem uma pequenina amostra. Caso sintam que algo está errado, procurem a Polícia Federal e entreguem a amostra do conteúdo”.

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Captura de tela feita em 13 de agosto de 2020 de uma publicação no Facebook

A imagem viralizada é na verdade, um fragmento de um vídeo sobre um caso ocorrido no município de Pontes e Lacerda, no Mato Grosso. A gravação foi feita por uma mulher que diz ter recebido ivermectina – não cloroquina – no hospital privado Vale do Guaporé, na cidade mato-grossense, que fechou uma parceria com empresários locais para a distribuição deste medicamento como profilaxia da COVID-19, embora não tenha eficácia comprovada.

Ivermectina, não cloroquina

Uma pesquisa inicial no Google por “cápsula + vazia” mostrou que uma história semelhante à da suposta cápsula de cloroquina vazia havia acontecido em Pontes e Lacerda, mas com a ivermectina. A partir desta informação, o Checamos buscou publicações que mencionassem a “ivermectina esvaziada”, chegando a três postagens (1, 2), uma delas publicada em 3 de agosto.

Nelas, havia um vídeo, com uma qualidade superior às das fotos viralizadas nas redes sociais, possibilitaram a identificação do nome do medicamento: ivermectina de 6mg.

No vídeo, uma mulher diz: “Eu fui na Santa Casa pegar uma ivermectina para poder tomar mais a minha filha. [...] E hoje era a data certa de tomar a segunda dose, com 15 dias. [...] Ela tomou um comprimido e o outro, por curiosidade, eu acredito, ela foi e abriu. Olha o que tinha dentro da cápsula. Nada!”.

A imagem viralizada nas redes sociais corresponde a um fragmento do vídeo em que a mulher mostra a cápsula de ivermectina vazia.

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Comparação feita em 11 de agosto de 2020 mostra a publicação viralizada (à esquerda) e o vídeo da ivermectina

A partir da informação do local onde isso teria ocorrido e o nome da coordenadora do projeto mencionado, Eliana Matsuda, o Checamos fez uma busca no Facebook e encontrou uma transmissão ao vivo realizada em 2 de julho de 2020 pela página Lacerda 24 horas com Matsuda em frente ao Hospital Vale do Guaporé (HVG).

Segundo a descrição do vídeo, tratava-se de um grupo de empresários que montou uma campanha para o “bloqueio da COVID-19” em Pontes e Lacerda e que distribuiria 10 mil doses de ivermectina gratuitamente.

Com início em 6 de julho, a campanha, segundo Eliana Matsuda, era uma parceria entre empresas, o Hospital Vale do Guaporé e médicos. O protocolo de medicação, por sua vez, foi feito pela doutora Jaqueline Margonato, do HVG.

A coordenadora do projeto e a doutora Jaqueline ressaltaram que, embora existam médicos que defendem o uso do medicamento, não há comprovação científica da sua eficácia na profilaxia da COVID-19.

Em contato telefônico, Eliana Matsuda ressaltou que a iniciativa foi firmada entre empresários e o hospital sem “cunho político nem dinheiro público”.

Também por telefone, a administradora do HGV Claudenice Luiza Lima assinalou que a mulher que gravou o vídeo com a cápsula de ivermectina não entrou em contato com a instituição e que o laboratório onde os medicamentos foram comprados disse “não haver possibilidade de a cápsula ter ficado vazia porque o processo é automatizado”.

Por fim, relatou que a equipe “abriu outras caixas de medicamento e não encontrou cápsulas com defeito”.

O Checamos também entrou em contato por telefone com a prefeitura de Pontes e Lacerda, que afirmou não ter ingerência sobre o tema, e com a Secretaria de Saúde do município, que acrescentou que o Hospital Vale do Guaporé é privado.

A equipe de checagem da AFP conversou com o presidente do Conselho Municipal de Saúde de Pontes e Lacerda, Elizeu Almeida, que assinalou que soube do ocorrido pelas mídias sociais e, por se tratar de um caso isolado e sem notificação formal, não deliberou sobre o tema.

A ivermectina industrializada é produzida em forma de comprimido, mas é possível encontrar o medicamento em cápsulas em farmácias de manipulação. Em nota, o Hospital Vale do Guaporé informou que recorreu a um laboratório de manipulação local porque “não havia na indústria, nos distribuidores e no comércio a ivermectina industrializada”.

Roberto Jefferson

Algumas imagens viralizadas nas redes têm como base uma suposta publicação feita pelo ex-deputado Roberto Jefferson, atual presidente nacional do PTB. Nas redes sociais dele, porém, não há nenhum registro de tal publicação.

O ex-deputado e outros aliados do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) são alvo de um inquérito sobre disseminação de notícias falsas e ataques a ministros do Supremo Tribunal Federal (STF).

Na imagem em questão, é possível ver que o nome do usuário é “blogdojefferson”, o mesmo que Roberto Jefferson usava para publicar tuítes. Contudo, a conta dele na rede social está suspensa desde 24 de julho, após decisão do ministro do STF Alexandre de Moraes.

Desde que sua conta foi bloqueada, Roberto Jefferson passou a usar o Twitter pelo usuário “@bobjeffhd”, como se pode confirmar em sua página verificada no Facebook, no qual não consta nenhuma publicação sobre cápsulas esvaziadas de cloroquina. Também não há registros nas contas no próprio Facebook e no Instagram. Na rede social Parler, por sua vez, não foi encontrado nenhum perfil de usuário @blogdojefferson.

Em contato com a equipe de checagem, a assessoria do político negou que ele tenha feito a postagem.

A cloroquina e seu derivado, hidroxicloroquina, tem estado em evidência desde o início da pandemia, principalmente pela defesa de seu uso no tratamento contra a COVID-19 por parte do presidente Bolsonaro. Após testar positivo para a doença no início de julho, o chefe de Estado divulgou um vídeo em que aparecia supostamente tomando hidroxicloroquina e disse “estar se sentindo muito bem”. Cerca de duas semanas depois, anunciou que seu teste havia dado negativo.

A cloroquina e a hidroxicloroquina não têm comprovação de eficácia no tratamento da doença causada pelo novo coronavírus. A agência de Medicamentos e Alimentos dos Estados Unidos (FDA) revogou a autorização de uso de emergência destes remédios, enquanto a Organização Mundial da Saúde (OMS) suspendeu seus estudos com a droga segue sem indicar qualquer medicamento específico.

Em resumo, é falso que a imagem viralizada de uma cápsula aberta e aparentemente vazia seja de cloroquina e tenha sido distribuída por prefeitos para “provar” que ela não funciona contra a COVID-19. Na verdade, trata-se do fragmento de um vídeo no qual uma mulher faz uma denúncia sobre uma cápsula supostamente vazia de ivermectina, entregue em uma ação de empresários do município de Pontes e Lacerda (MT), com a parceria de um hospital privado.

Esta investigação faz parte do Projeto Comprova. Participaram jornalistas da AFP, Estadão e UOL.

EDIT 14/08: Acrescenta no 5º parágrafo os links para o vídeo da ivermectina

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