Comentários de Mel Gibson em podcast alimentam alegações infundadas sobre a cura do câncer

Não existem evidências científicas de que a ivermectina, o fenbendazol, o dióxido de cloro e o azul de metileno sejam eficazes para curar o câncer. Apesar disso, desde janeiro de 2025, milhares de usuários compartilham um vídeo do ator norte-americano Mel Gibson afirmando ter três amigos que superaram o câncer utilizando os medicamentos. Mas especialistas explicaram à AFP que as substâncias podem ser perigosas para a saúde e negaram que possam curar o câncer.

“Tenho três amigos. Todos os três tiveram estágio quatro de câncer. Todos os três não têm câncer agora e estavam passando por coisas sérias”, diz Mel Gibson na gravação compartilhada  no Facebook, no Instagram e no Telegram, em que é entrevistado pelo apresentador Joe Rogan, já verificado pela AFP no passado.

Rogan, então, pergunta o que essas pessoas teriam tomado para se curar do câncer, ao que Gibson responde: “Eles tomaram o que você ouviu que eles tomaram. Sim, ivermectina, fenbendazol (...) Eles beberam dióxido de cloro, algo assim, há estudos sobre isso agora, onde as pessoas provaram que beberam azul de metileno. Essas coisas funcionam, cara”.

Conteúdo semelhante circula em inglês, francês e espanhol.

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Captura de tela feita em 29 de janeiro de 2025 de uma publicação no Instagram (.)

O vídeo viral é um trecho do episódio 2254 do podcast “The Joe Rogan Experience”, que teve  Gibson como convidado.

Mas as declarações do ator sobre curas do câncer não contam com aval científico.

Dióxido de cloro

O dióxido de cloro, ou “CDS”, é um composto químico produzido pela combinação entre clorito de sódio e ácido clorídrico, em alguns casos de fabricação caseira.

Como explica a Agência para Substâncias Tóxicas e Registro de Doenças dos Estados Unidos (ATSDR), é “um gás que não ocorre naturalmente no ambiente” e que “é usado para desinfetar a água potável”.

Consultado pela AFP, Matías Norte, médico da Divisão de Cirurgia Oncológica do Hospital de Clínicas, em Buenos Aires, descartou a existência de estudos que comprovem que o dióxido de cloro cure o câncer.

“É um antisséptico, um desinfetante de superfícies. Se você pôr uma célula ou um micróbio sobre uma superfície e passar o dióxido de cloro, a célula morrerá. Porém, isso não significa que acontecerá o mesmo dentro do nosso corpo”, explicou o especialista.

A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), a Administração Nacional de Medicamentos, Alimentos e Tecnologia Médica da Argentina (Anmat) e a agência suiça de medicamentos Swissmedic recomendam evitar o consumo do dióxido de cloro, também conhecido como “MMS” (Solução Mineral Milagrosa), já que tampouco foi comprovado seu uso como medicamento. Além disso, a substância pode provocar problemas de saúde, como dor abdominal, náuseas, vômitos, diarreia, insuficiência respiratória e até mesmo a morte.

Não é a primeira vez que o dióxido de cloro é anunciado como a cura ou solução para o câncer e outras enfermidades. A AFP já desmentiu anteriormente essas alegações, indicando que não existem evidências científicas de eficácia para essa doença, assim como contra o coronavírus, a hepatite e a esclerose múltipla.

Ivermectina

A ivermectina é um fármaco antiparasitário geralmente usado em animais. Em humanos, o medicamento é aprovado para o tratamento de infecções causadas por alguns parasitas e piolhos, assim como para doenças de pele como a rosácea.

O medicamento foi objeto de desinformação em várias ocasiões, sendo promovido como uma “cura milagrosa” para diversas enfermidades (1, 2), principalmente durante a pandemia da covid-19, quando foi estudado como uma opção para tratar e prevenir a doença. Porém, os resultados obtidos não demonstraram sua eficácia.

Em janeiro de 2025 ainda está em curso uma pesquisa que recruta pacientes com câncer de mama triplo negativo, um dos tipos mais agressivos, para investigar se a combinação de ivermectina e imunoterapia com balstilimab pode ser um tratamento eficaz.

Porém, o estudo ainda não foi concluído e seu objetivo é avaliar o uso da ivermectina combinado com outro medicamento, não de modo isolado. 

Portanto, não existem provas que comprovem que essa droga pode tratar o câncer em seres humanos atualmente.

Matías Norte afirmou que a ivermectina “não é utilizada de maneira alguma no tratamento do câncer”, acrescentando que não existem evidências científicas que comprovem sua eficácia contra a enfermidade.

“Há uma crença de que [a ivermectina] poderia atingir o nível da glicólise, ou seja, fazer com que a glicose não entre na célula cancerígena, mas isso de forma alguma faria a célula cancerígena morrer”, explicou.

A Agência de Alimentos e Medicamentos dos Estados Unidos (FDA) especifica que uma overdose de ivermectina pode causar náuseas, vômitos, diarreia, hipotensão (pressão arterial baixa), reações alérgicas (comichão e urticária), tonturas, ataxia (problemas de equilíbrio), convulsões, coma e até morte.

Fenbendazol e azul de metileno

O fenbendazol é um anti-helmíntico usado para tratar parasitas em animais.

Estudos revisados por pares examinaram o medicamento e outros da mesma categoria como possíveis tratamentos para o câncer, porém nenhum deles encontrou provas suficientes que comprovem a eficácia.

“Ver dados promissores em uma placa de células cancerígenas é o começo”, disse à AFP em 2023 a diretora do Centro de Descoberta na Pesquisa do Câncer da Universidade McMaster, Sheila Singh. “Mas dizer que algo poderia curar o câncer é pouco confiável do ponto de vista científico, porque não há dados que comprovem essa afirmação”.

“A medicina não pode generalizar através de um, dois ou três casos, deve ter uma amostra estatisticamente representativa”, acrescentou Matías Norte.

Já o azul de metileno, ou cloreto de metiltionina, é um composto químico usado principalmente para tratar a metahemoglobinemia, uma doença sanguínea. O medicamento é utilizado em cirurgias como corante para tingir algumas partes do corpo, e possui propriedades antissépticas e cicatrizantes.

Fora da área médica, o azul de metileno também é usado na indústria têxtil para tingir tecidos e na química como indicador em reações redox.

Perguntada sobre a relação com o câncer, a oncologista clínica Victoria Costanzo explicou à AFP que “às vezes” o medicamento é utilizado em procedimentos cirúrgicos para a doença, porém também “em outras coisas”.

“Foi descoberto ultimamente que o azul de metileno poderia ter benefícios no tratamento contra o glaucoma, porém nada além disso, porque possui mais toxicidade do que benefícios”, afirmou também Norte.

O composto químico pode provocar tonturas, sudorese e mudanças de coloração na pele, por isso não se deve fazer uso sem supervisão médica.

Constanzo desmentiu a existência de evidências científicas que apoiem o uso do azul de metileno, assim como do fembendazol, ivermectina ou o dióxido de cloro para curar o câncer. “Por enquanto, é experimental ou [se encontra] no campo das fantasias”, disse.

“Recomendaria que nenhuma pessoa, muito menos um paciente que tenha diagnóstico de câncer, consuma qualquer uma dessas medicações sem o controle estrito de um médico de confiança”, acrescentou Constanzo.

O presidente da Associação Argentina de Oncologia Clínica, Claudio Martin, concordou com a especialista, e acrescentou à AFP que em caso de ingestão de alguma dessas drogas mencionadas, deve-se consultar um oncologista, já que podem afetar a saúde.

O AFP Checamos já verificou outros temas sobre supostas “curas milagrosas” do câncer (1, 2).

Referências

  • Informações sobre o dióxido de cloro (1, 2, 3, 4, 5)
  • Informações sobre a ivermectina (1, 2, 3)
  • Informações sobre o fenbendazol (1, 2, 3)
  • Informações sobre o azul de metileno (1, 2, 3, 4)

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