Gravação que mostra sofá em poste é de 2023 e não tem relação com abertura de barragens no RS

  • Publicado em 28 de maio de 2024 às 22:38
  • 7 minutos de leitura
  • Por AFP Brasil
Um vídeo que mostra objetos presos a postes de luz em Arroio do Meio, no Rio Grande do Sul, circula desde setembro de 2023, quando a região do Vale do Taquari enfrentou uma enchente de grandes proporções. Mas, desde 17 de maio de 2024, a gravação foi compartilhada mais de 2 mil vezes como se retratasse as enchentes históricas que assolam o estado este ano. As mensagens também alegam que a situação atual não teria sido causada por eventos climáticos, e sim pela abertura de barragens. Segundo especialistas, porém, a principal explicação para o ocorrido é o grande volume de chuvas.

“Não foi a chuva que causou a tragédia no RS, foram abertas 5 barragens ao mesmo tempo!”, diz uma das mensagens que circulam no X. O conteúdo também é difundido no Facebook, no Instagram e no Telegram.

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Captura de tela feita em 23 de maio de 2024 de uma publicação no X (.)

A gravação, de aproximadamente 20 segundos, é feita a partir de um veículo em movimento e mostra uma estrada de terra com postes de eletricidade visivelmente danificados e com entulhos. Durante a filmagem, uma voz narra: “Olhem a altura: um sofá em cima do poste! (...) Esse aqui é o cenário em Arroio do Meio”.

Uma busca reversa por fragmentos do vídeo usando a ferramenta InVid-WeVerify* no Google levou ao mesmo vídeo publicado em 11 de setembro de 2023 no Kwai. 

Em setembro de 2023, o rio Taquari — à beira do qual o município de Arroio do Meio está localizado — teve uma das maiores cheias de sua história, causando enchentes e inundando a cidade, como registraram veículos de imprensa (1, 2, 3).

Uma busca na plataforma TikTok por “arroio do meio enchente 2023” localizou uma outra publicação, de 7 de setembro daquele ano, que mostra um cenário com os mesmos elementos do vídeo viral:

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Comparação feita em 23 de maio de 2024 entre uma publicação de 2024 no X (E) e outra de 2023 no TikTok (.)
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Comparação feita em 23 de maio de 2024 entre uma publicação de 2024 no X (E) e outra de 2023 no TikTok (.)

De maneira semelhante, uma pesquisa no Google por “arroio do meio enchente”, filtrando por vídeos publicados entre 1º e 30 de setembro de 2023, localizou filmagens feitas pelo veículo Rádio Independente que mostram um cenário compatível com o da gravação viralizada (1, 2).

As barragens da região: usinas a fio d’água

O município de Arroio do Meio está inserido na Bacia Hidrográfica do rio Taquari-Antas, às margens do rio Taquari.

No site da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) é possível consultar a lista de usinas hidrelétricas e reservatórios presentes na região.

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Captura de tela feita em 23 de maio de 2024 do site da ANA (.)
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Captura de tela feita em 23 de maio de 2024 do site da ANA (.)

Como mostrado pela representação gráfica no site da ANA, seis das oito usinas presentes na região operam a fio d’água. São elas: Jacuí, Itaúba, Dona Francisca (no rio Jacuí) e Castro Alves, Monte Carlo e 14 de Julho (no rio Taquari-Antas).

A denominação“a fio d’água” significa que essas usinas “não possuem a capacidade de armazenamento e nem de regular o fluxo do rio, já que todo o excedente de água passa por cima da barragem”, como explicou a Companhia Energética Rio das Antas (Ceran), em nota divulgada em setembro do ano passado. A companhia administra as usinas localizadas no rio das Antas (Castro Alves, Monte Carlo e 14 de Julho), que são as mais próximas ao município de Arroio do Meio.

Em 1º de maio, a Ceran informou que, devido à alta vazão no rio das Antas causada pelas chuvas, as barragens das usinas Monte Claro e Castro Alves estavam em estado de atenção, tendo sido solicitado à Defesa Civil a retirada da população nas áreas próximas.

Em 2 de maio, a usina 14 de Julho registrou um rompimento parcial de sua barragem. Segundo a Ceran, esse rompimento não representou um aumento significativo nas vazões da Bacia Taquari-Antas.

Consultada pelo AFP Checamos, a Ceran detalhou, ainda, que a “área de abrangência da mancha de inundação causada pela ruptura da barragem da UHE 14 de Julho abrange 09 municípios”, mas não inclui a cidade de Arroio do Meio.

Fernando Dornelles, engenheiro civil e professor no Instituto de Pesquisas Hidráulicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (IPH/UFRGS), disse ao AFP Checamos que, em seu entendimento, o cenário apresentado no vídeo viral “não tem explicação com base em manobra de abertura de comportas de barramentos”. Sobre as usinas localizadas no rio das Antas, Dornelles afirmou:

“Algumas destas barragens possuem comportas e que podem ser abertas para manter a integridade da estrutura, o que não foi garantido para a [usina] 14 Julho, que teve uma ruptura parcial do vertedor”. No entanto, essas usinas “trabalham a fio d'água, ou seja, sua capacidade de armazenamento é pouco relevante”.

Rodrigo Paiva, doutor em Hidrologia e também docente no IPH/UFRGS, fez uma avaliação semelhante, observando que “o volume de água armazenado nos reservatórios da bacia do Taquari-Antas é muito pequeno em comparação ao volume de água das chuvas que atingiram a região e desta cheia natural”.

“Então, a operação destas usinas com abertura de comportas não seria capaz de causar uma cheia e impactos negativos tão elevados como observamos em maio de 2024”, acrescentou.

Usinas Ernestina e Passo Real

As duas outras usinas próximas a Arroio do Meio, Ernestina e Passo Real, são geridas pela Companhia Estadual de Geração de Energia Elétrica (CEEE-G) do Rio Grande do Sul, que desde 2022 é administrada pela Companhia Siderúrgica Nacional (CSN). Como visto na representação no site da ANA, tratam-se das duas únicas usinas na bacia que não operam a fio d’água e possuem reservatórios.

Procurada pelo AFP Checamos, a CSN afirmou que a barragem da usina Ernestina não possui comportas.

Já a barragem da usina Passo Real tem, sim, comportas que foram abertas em maio de 2024, devido ao grande volume de chuvas. A abertura foi feita para garantir a segurança da barragem, segundo a CEE-G. Como resultado da abertura e do grande volume de águas liberado, as usinas de Jacuí e sua subestação foram inundadas.

Segundo informado à AFP pela CSN, “as barragens são operadas de acordo com as regras do setor elétrico, coordenadas pelo ONS (Operador Nacional do Sistema Elétrico), que levam em consideração o cenário hidrológico (inclusive a contenção de cheias) e a segurança das estruturas e da população. As comportas do Passo Real são manobradas dentro desses critérios”.

Por meio de sua assessoria de imprensa, a companhia ainda negou que a abertura das comportas tenha causado as enchentes e inundações no Rio Grande do Sul, e atribuiu o cenário às chuvas intensas no estado.

“O grave cenário foi causado pelo volume histórico de chuvas, registrado simultaneamente em diversas bacias hidrográficas do Rio Grande do Sul. As barragens das hidrelétricas amorteceram as cheias dentro de suas capacidades nos rios em que atuam”, disse a CSN.

André Luiz Lopes da Silveira, doutor em Recursos Hídricos e docente do IPH/UFRGS, também avaliou que a abertura de comportas de usinas hidrelétricas na região “definitivamente” não seria suficiente para causar uma devastação como a observada atualmente no estado gaúcho.

“Foi o maior evento da história, mesclando comportamento natural e efeito climático. Esta é uma região do planeta onde se esperam aumentos significativos nos volumes e intensidades de chuva.”

De maneira semelhante, na avaliação de Rodrigo Paiva, a principal explicação para as enchentes e inundações no sul do país é, de fato, o volume intenso de chuvas, em um contexto de mudanças climáticas:

“A principal explicação para esta grande enchente foi o elevado volume de chuva que caiu em curto intervalo de tempo e em uma grande região. Este evento não ocorreu isoladamente, mas após duas enchentes históricas em 2023. Pesquisas com dados históricos apontam para aumento da magnitude das cheias no sul do Brasil nas últimas décadas.”

E ressalta: “Além disso, pesquisas recentes sobre projeções do impacto das mudanças climáticas mostram que justamente no sul do Brasil deve ocorrer o aumento da magnitude e frequência das cheias”.

*Uma vez instalada a extensão InVid-WeVerify no navegador Chrome, clica-se com o botão direito sobre a imagem e o menu que aparece oferece a possibilidade de pesquisá-la em vários buscadores.

Referências

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