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Nem guetos nem prisões: desinformação e mentiras sobre as cidades de 15 minutos
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- Publicado em 14 de março de 2023 às 18:55
- 7 minutos de leitura
- Por Natalia SANGUINO, AFP Espanha, AFP Brasil
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“Você precisa saber q as cidades de 15 minutos, q estão sendo implantadas pelos Governos d todo mundo, através de diretrizes da ONU e do Fórum Econômico Mundial, representará o fim da mobilidade como Direito Humano.Haverá multa para quem sair do seu distrito e portões de controle”, assegura umas das publicações compartilhadas no Facebook.
Mensagens similares, acompanhadas de outras mídias mas que também alegavam que o conceito resultaria em mais controle sobre os cidadãos, foram compartilhadas no Telegram, no Twitter, no TikTok e no Kwai.
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O conteúdo circula também em espanhol.
A AFP contactou o idealizador da “cidade de 15 minutos”, o urbanista e professor na Universidade Sorbonne de Paris Carlos Moreno. Quando questionado se na “cidade de 15 minutos” deveria existir alguma vigilância, barreiras ou sanções a quem descumpra o critério de proximidade, Moreno afirmou: “Não, nunca, mentiras, manipulações, falsidades”.
Mas então, no que consiste a “cidade de 15 minutos”? E por que existe tanta desinformação ao redor do conceito?
A definição da ideia
Em seu livro “A revolução da proximidade”, Carlos Moreno define “a cidade policêntrica e multifuncional” como a de "quinze minutos”, “na qual os serviços essenciais estão acessíveis a um quarto de hora”, e lamenta “a onipresença de construções por todas as partes”, assim como “o espaço cedido ao automóvel como vetor fundamental do planejamento urbano há quase um século”.
O próprio Moreno resumiu à AFP em 1° de março de 2023 seu conceito urbano: “Está baseado na ideia de que todo mundo deveria ter acesso aos serviços e recursos que necessitam em um perímetro curto”. A ideia é que os habitantes das cidades “possam ter acesso às suas seis necessidades essenciais (moradia, cuidado, educação, lazer, trabalho e suprimentos) em um espaço de tempo aceitável para a maioria das pessoas”, que seria um quarto de hora para cidades e 20-45 minutos para zonas de baixa ou média densidade populacional.
A arquiteta Margarita de Luxán, catedrática emérita da Universidade Politécnica de Madrid, considerou, em declarações à AFP em 4 de março de 2023, que Moreno mostrou “uma boa visão informativa” ao chamar de “cidade de 15 minutos” a “cidade da proximidade, proposta pelo urbanismo”, que “nasce da ideia de fomentar cidades saudáveis, menos contaminadas e com serviços próximos".
O Fórum de Davos e a Agenda 2030
Segundo os usuários, o Fórum Econômico Mundial (FEM, ou Fórum de Davos) impulsiona ou “está por trás” das “cidades de 15 minutos”. Ainda que o FEM tenha publicado informações sobre a iniciativa, não está “por trás” da ideia, afirmou Moreno à AFP e acrescentou que tampouco está envolvido “direta ou indiretamente”.
O conceito, disse Moreno, alcançou popularidade em 2019 “quando a prefeita de Paris, Anne Hidalgo, inclui-o em sua campanha eleitoral para o pleito municipal, e depois [da pandemia de] covid-19, quando prefeitos de todo o mundo apoiaram” a proposta para suas cidades na cúpula de Prefeitos da C40, que ocorreu em Buenos Aires em outubro de 2022. “O Fórum Econômico Mundial fez um vídeo de 30 segundos sobre Paris e publicou vários textos, mas não existe maior relação”.
Em um dos vídeos virais, um apresentador diz: “Vamos nos concentrar no plano, como resume o Fórum de Davos, com esta imagem”, e aponta para uma ilustração que resume a ideia de Carlos Moreno.
Por meio de uma busca reversa da imagem e da assinatura que aparece na ilustração, “Micaël”, a AFP verificou que sua origem não está no FEM, e sim na proposta gráfica de 2020 para “Paris en Commun”, a plataforma liderada por Anne Hidalgo para ser reeleita prefeita da capital francesa.
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No caso da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, um plano de ação global da ONU para melhorar a qualidade de vida dos habitantes do planeta, de fato há uma vinculação com a proposta urbana. O objetivo 11 dos 17 que o documento propõe cumprir até 2030 refere-se a cidades “com maior resiliência e qualidade de vida”. A ONU-Habitat premiou a proposta de Moreno e em 2022 a incluiu em seu relatório sobre as cidades do futuro.
Proposta não inclui restrições, barreiras nem vigilância
A “cidade de 15 minutos”, nas palavras de seu idealizador, “não propõe confinar ou restringir, e sim poupar tempo a seus cidadãos. Não se trata de evitar o deslocamento e sim de dar a todos a escolha de se deslocar”. “É uma proposta de proximidade feliz, não uma prisão”, assinalou o urbanista.
Por sua vez, Margarita de Luxán explicou: “De maneira alguma se coloca algum controle de limitação”, e sim “uma continuidade entre as zonas que atendem a essas condições” de proximidade. “Em nenhum caso se trata de criar guetos”, e sim “fornecer boas condições aos habitantes das áreas urbanas”, continuou.
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Nesse sentido, o urbanista Carlos Leite, professor da Universidade Mackenzie e consultor em desenvolvimento urbano, explicou à AFP que o conceito de cidades com diversas centralidades, nas quais os habitantes possam encontrar a pé ou de bicicleta tudo o que precisam em seu dia a dia, é uma tendência em diversos países no século XXI, incluindo no Brasil.
“O século XXI surgiu com uma demanda muito clara, diversos autores que já vinham discutindo isso principalmente a partir dos anos 90 [em] um movimento que nos EUA se chamou de novo urbanismo, (...) contra o ‘american way of life’ [estilo de vida americano, em tradução livre], ou a vida nos subúrbios, que é totalmente modelada no uso do carro”, explicou Leite.
“E aí apareceu, dentro dessa tendência, a expressão da cidade de 15 minutos da prefeita Anne Hidalgo de Paris, que ficou famosíssima. Ou seja, não tem grande novidade: mas por vir de Paris, de uma cidade icônica (...) ficou muito famoso” e o conceito acabou distorcido nas redes sociais, continuou o urbanista.
Segundo Leite, a ideia por trás do conceito seria, inclusive, a tese central do plano diretor estratégico de São Paulo de 2014, que visa aproximar os habitantes do transporte público. O urbanista, que participou da elaboração do plano diretor da cidade de Mogi das Cruzes em 2018, afirma que também já se orientou pelo conceito:
“A gente propõe exatamente isso: centralidades multifuncionais com maiores densidades. Botar mais gente com comércio, fachadas ativas, equipamentos públicos, onde as pessoas possam encontrar próximo da sua moradia , (...) a pé ou de bicicleta tudo aquilo que está no seu dia a dia”.
Leite também afirmou que a ideia de que as cidades de 15 minutos iriam restringir a liberdade de locomoção de seus habitantes “beira o ridículo. É óbvio que isso não impõe supressão de liberdade para ninguém”.
A proposta de Oxford
As supostas sanções e restrições para aqueles que desejam se deslocar além dos 15 minutos são mencionadas em várias publicações e em vídeos como o da reportagem viral, que citam como exemplo a cidade inglesa de Oxford, ou o condado de Oxfordshire, que asseguram que “já aprovou sua implementação” para que os habitantes tenham que “pedir permissão às autoridades para sair de sua zona”.
Essas publicações se referem a uma iniciativa aprovada pelo Conselho do Condado de Oxfordshire em novembro de 2022, que desencadeou protestos entre os cidadãos e desinformação nas redes sociais. O plano de trânsito, em fase de teste, visa limitar a circulação de veículos a motor em ruas movimentadas nos horários de pico. O site do condado vincula o plano à ideia dos “distritos de 15 minutos”, embora a proposta se limite a evitar engarrafamentos.
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“No Brasil, como nós estamos muito distantes ainda dessa realidade - que é muito mais fácil de ser encontrada principalmente em países da Europa-, eu não chamaria de ‘cidade de 15 minutos’ porque seria um sonho que nós ainda demoraríamos muito” para atingir, disse Leite. “Eu prefiro chamar de bairros completos ou centralidades multifuncionais, que no Brasil ainda nós não conseguimos salvo em pouquíssimas exceções”.
“Infelizmente nas cidades brasileiras tudo é longe de tudo, os bairros são monofuncionais, a grande absoluta maioria da população pobre vive nas periferias onde só há oferta de moradia e olhe lá, então nós estamos muito longe desse sonho, que é de uma cidade mais viva, mais dinâmica, de maior vitalidade, e com isso também de maior segurança, porque nada mais inseguro do que uma cidade onde não tem ninguém na rua”, completou.