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Copa do Mundo 2022: por que o número de mortes nos canteiros de obras é difícil de quantificar
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- Publicado em 29 de novembro de 2022 às 15:41
- Atualizado em 1 de dezembro de 2022 às 16:40
- 12 minutos de leitura
- Por Alexis ORSINI, AFP França, AFP Brasil
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Quantos trabalhadores imigrantes perderam a vida no Catar depois que o emirado começou, há dez anos, a construção da infraestrutura necessária para receber o Mundial?
Essa pergunta angustiante persegue o Estado do Golfo, com vários meios de comunicação (1, 2, 3) e ONGs denunciando as condições de trabalho extremas desses trabalhadores, e tem ganhado espaço nas redes com o início da Copa do Mundo (1, 2).
As denúncias suscitam um vigoroso desmentido das autoridades cataris, que as classificam como “calúnia”, “racismo” e ameaçam, agora, com ações judiciais.
O Comitê Executivo da organização do Mundial afirmou“ter trabalhado incansavelmente para garantir o respeito aos direitos de cada operário contratado para os projetos da Copa do Mundo” e assegurou que alcançaram “progressos significativos” em diferentes áreas (alojamento, saúde e segurança).
Os principais cálculos feitos a esse respeito estão sujeitos a uma considerável disparidade, o que torna particularmente complicada qualquer contagem exata, como destaca à AFP Quentin Müller, jornalista independente especializado na Península Arábica e coautor da pesquisa “Os escravos do homem-petróleo”: “Até mesmo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), que atua lado a lado com o Catar, reconheceu que era muito difícil obter estatísticas conclusivas sobre os acidentes de trabalho ocorridos nos canteiros de obra”.
No entanto, dois números são regularmente apresentados: o de mais de 6.500 cidadãos estrangeiros mortos no Catar entre 2010 e 2020, mencionado pelo jornal britânico The Guardian, e o de três trabalhadores que morreram nos canteiros, divulgado pelo Comitê Executivo da organização do Mundial. Mas esses dois valores precisam ser contextualizados.
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Números diametralmente opostos
Como explica o The Guardian em seu artigo de fevereiro de 2021, sua conta apresenta o número de cidadãos da Índia, do Nepal, de Banglasdesh e do Sri Lanka que morreram no Catar entre o período de 2011-2020, e também dos que vieram do Paquistão no período de 2010-2020. Os dados foram recolhidos junto às autoridades de saúde do Catar e de diferentes instituições dos cinco países — principalmente de suas embaixadas locais.
“O número total de mortos é muito maior, essas cifras não incluem as mortes de vários países que fornecem uma importante mão-de-obra ao Catar, como as Filipinas e o Quênia”, detalha o jornal. Os migrantes representam mais de 80% dos 2,8 milhões de habitantes do Catar.
Além disso, essas 6.751 mortes incluem todos os cidadãos da Índia, do Nepal, de Bangladesh, do Sri Lanka e do Paquistão que morreram no Catar durante esse período, e não o número específico de trabalhadores que morreram nos canteiros de obras. “Esses números de mortalidade são gerais: um cidadão do Sri Lanka que morreu atropelado por um carro na rua pode ser contado lá”, destaca Quentin Müller.
O Comitê Executivo da organização do Mundial, por sua vez, publica desde 2015 um relatório anual relativo à “saúde dos trabalhadores”. De acordo com essa contagem, três operários morreram em um acidente de trabalho nos canteiros de obras diretamente ligados ao Mundial: dois no estádio Al Wakrah, em outubro de 2016 e em agosto de 2018, e um terceiro no estádio Khalifa, em janeiro de 2017.
Embora esses relatórios contabilizem outras 37 mortes ocorridas entre abril de 2015 e dezembro de 2021, todos esses falecimentos são classificados como “mortes não relacionadas ao trabalho”. Elas geralmente englobam os trabalhadores encontrados mortos em seus alojamentos ou no hospital em consequência de um problema médico ocorrido fora de seu horário de trabalho.
Mas essa lista também inclui as mortes ocasionadas no interior dos estádios sem que sejam contabilizadas como mortes relacionadas ao trabalho, como a ocorrida em 27 de abril de 2016, quando um “indiano de 48 anos desmaiou no túnel dos jogadores de um dos estádios em construção enquanto trabalhava com ligas de aço” antes de morrer em um hospital vítima de uma “parada cardíaca provocada por uma grave insuficiência respiratória”.
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Mortes por “causas naturais”
Uma “causa” de morte mencionada regularmente nos relatórios sobre as “mortes não relacionadas ao trabalho” revela-se problemática, como destacou à AFP Lola Schulmann, encarregada de defesa da Anistia Internacional França: “Após as nossas observações na época, 18 das 33 mortes identificadas ainda não continham nenhuma informação sobre as causas do falecimento. Em vez disso, indicou-se um problema respiratório ou uma 'causa natural', o que mostra que não há uma investigação realizada de forma adequada pelas autoridades para identificar as causas da morte e, portanto, a possível ligação entre as condições de trabalho e essas mortes".
Como observou o doutor David Bailey, patologista e membro da Força-Tarefa da Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre Certidão de Óbito, em um relatório da Anistia Internacional de agosto de 2021, tais menções "não devem aparecer em uma certidão de óbito sem mais explicações da causa subjacente".
"Todo mundo morre de insuficiência respiratória ou cardíaca no final, e essas fórmulas não têm sentido sem explicação adicional. 'Causas naturais' não são uma explicação suficiente", apontou o especialista no documento, lembrando "o risco que o calor e a umidade extremos representam para os trabalhadores".
Em seu relatório, a Anistia Internacional lamentou, ainda, que as autoridades do Catar não tenham fornecido o número de investigações realizadas sobre as mortes de trabalhadores imigrantes ocorridas desde 2010, alegando que enfrentaram vários obstáculos, incluindo a oposição de algumas famílias dos desaparecidos a necropsias por "razões culturais".“No entanto, não foi oferecida a nenhuma das famílias com quem a Anistia falou a necropsia do seu ente querido com o objetivo de identificar a causa da morte”, destacou a ONG.
“Causa desconhecida” e “doenças cardiovasculares”
Essa imprecisão sobre as causas da morte é vista mais globalmente nas estatísticas oficiais do Catar sobre o número de mortes anuais contabilizadas no país. Como destaca a Vital Signs, uma coalizão de ONGs de defesa dos direitos dos migrantes que trabalham no país do Golfo, em um relatório publicado em março de 2022, o número de imigrantes que morreram por uma “causa desconhecida” caiu drasticamente desde 2016, enquanto as mortes por “doenças cardiovasculares”, paralelamente, aumentaram muito.
“Em 2015, 376 pessoas não-cataris de todas as idades foram listadas entre as mortes por causa desconhecida, um número que diminuiu para 82 em 2016. Em contraste, o número correspondente de mortes por doença cardiovascular passou de 221 em 2015 para 464 em 2016”, pontua esse documento, antes de acrescentar: “A menos que as autoridades do Catar tenham mudado consideravelmente a maneira de investigar a morte de migrantes (e nada indica que esse seja o caso), parece provável que o número crescente de trabalhadores imigrantes categorizados nas mortes causadas por uma doença cardiovascular encobre o fato de que a causa de suas mortes continua desconhecida na maior parte dos casos”.
O The Guardian notou, por sua vez, que 69% das mortes de cidadãos da Índia, do Nepal e de Bangladesh listados na sua pesquisa foram atribuídas a “causas naturais”.
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OIT: 50 mortes e 500 ferimentos graves de trabalho em 2020
A Organização Internacional do Trabalho, por sua vez, publicou em 2021 um balanço contabilizando, em 2020, 50 mortes e 500 ferimentos graves de “trabalhadores” no “contexto do seu trabalho”, sendo a maioria das vítimas originárias “de Bangladesh, da Índia e do Nepal”.
Esses números são contextualizados pela própria OIT em seu relatório, apontando as "lacunas na coleta desses dados e as diferenças na forma como os múltiplos ministérios e instituições classificam as lesões e as mortes relacionadas com o trabalho", o que explica porque "ainda não é possível apresentar um número categórico sobre a quantidade de acidentes de trabalho letais no país".
Contactada pela AFP, a OIT recordou que "o número de operários presentes nas instalações do Comitê Executivo era de 32 mil no auge [da construção], ou seja, menos de 2% da força de trabalho total do país", um argumento compartilhado pelas autoridades do Catar, cujas estatísticas focam na força de trabalho concentrada nos oito estádios da competição — sete construídos do zero e um oitavo reformado para o evento.
No entanto, a OIT reconhece a existência de uma outra abordagem de cálculo, que consiste em considerar "todas as infraestruturas ligadas ao desenvolvimento do país" relacionadas "ao Mundial", uma visão mais pertinente, segundo Quentin Müller. "Os estádios estão longe de serem as únicas obras lançadas para o Mundial: podemos também citar a ampliação do aeroporto, a criação do metrô...", exemplificou.
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Condições de trabalho que tornam o descanso “quase impossível”
“Devemos parar de considerar que os metrôs, hotéis, etc. não foram construídos para a Copa do Mundo, como faz o Catar”, disse à AFP Marie-Laure Guislain, coautora de denúncias para a associação Sherpa contra o grupo Vinci, em 2015 e 2018, por "redução da servidão e trabalho forçado" dos funcionários migrantes do grupo e suas subsidiárias que constroem a infraestrutura do Mundial.
A antiga responsável do litígio da associação Sherpa detalha as observações que fez durante sua investigação no Catar, em 2014, que lhe permitiu "ir aos canteiros de obras, recolher depoimentos dos trabalhadores" e integrar uma delegação da Building and Wood Workers' International:
"Vi trabalhadores aguardando seu almoço debaixo de sol durante seu tempo de descanso. Eles pegavam três horas de transporte por dia de seu alojamento para os canteiros de obras, levantando-se às 4h30 e voltando depois das 19h para o alojamento. A isso acrescentam-se condições em que é quase impossível descansar, pois muitas vezes eram oito em um quarto, em beliches, em condições de habitação incompatíveis com a dignidade humana, e até incompatíveis com as normas do Catar. Os trabalhadores diziam-nos que tinham muito medo de acabar como os seus colegas que 'caíam ao seu redor', e não sabiam o porquê", continuou Marie-Laure Guislain.
Recentemente, uma investigação complementar resultou em uma reportagem sobre as condições de vida deploráveis desses trabalhadores em uma transmissão em 13 de outubro de 2022 na emissora France 2.
Marie-Laure Guislain recordou, além disso, as medidas que poderiam ter sido adotadas previamente para assegurar a segurança desses trabalhadores: “O mínimo poderia ser feito com os intervalos para descanso, sistemas de sombreamento para que os trabalhadores não trabalhassem sob o sol, alojamentos que fossem dignos desse nome, que não estivessem a 1h30 do canteiro, acesso suficiente à água e aos medicamentos, a possibilidade de fazer queixas perante às instâncias de uma empresa, e os direitos básicos de liberdade respeitados…”.
Mortes ocorridas nos países de origem dos operários
Para Quentin Müller, se o número geral de mais de 6.500 mortes divulgado pelo The Guardian “teve o mérito de chamar atenção”, ele permanece, em sua avaliação, “muito abaixo da realidade, pois não leva em conta dados adicionais, principalmente as mortes dos operários ocorridas após o seu retorno ao país de origem, muitos deles com doenças renais, principalmente no Nepal, de acordo com os depoimentos que conseguimos coletar”.
O nefrologista Rishi Kumar Kafle, do Centro Nacional de Rins de Katmandu, capital do Nepal, estimou, em um artigo da revista Time, publicado no início de novembro de 2022, que os trabalhadores que emigraram para os países do Golfo representam 10% de seus pacientes atuais.
"Esses jovens não têm diabetes ou hipertensão. Eles são saudáveis. E então, de repente, eles desenvolvem insuficiência renal, o que significa que há algo nesses países que deixa alguns desses jovens doentes", atestou o especialista, citando diversas possíveis causas, entre as quais está desidratação permanente, o consumo excessivo de analgésicos ou, ainda, o calor.
Quentin Müller considera, portanto, que a maneira mais "representativa" de estimar a quantidade de operários imigrantes falecidos no Catar é procurando o número de "trabalhadores asiáticos que desaparecem todos os anos nos países do Golfo". A coalizão Vital Signs estima em seu relatório de março de 2022 que "até 10.000 trabalhadores imigrantes do sul e sudeste da Ásia" morrem anualmente nessa região do globo, e que a causa dessas mortes "permanece inexplicada" em mais de um a cada dois casos.
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Nova legislação que "não vai suficientemente longe"
"Entre os números oficiais do Catar e o que pudemos constatar durante as nossas investigações no local, e as nossas pesquisas, não estamos de maneira nenhuma na mesma ordem de grandeza", estima Lola Schulmann, da Anistia Internacional França, apontando, em ordem de grandeza, para "milhares de mortos".
Um responsável do governo do Catar defendeu à AFP"o vasto leque de medidas" tomadas para "melhorar as vidas de todos os trabalhadores" do país, considerando que "ninguém pode legitimamente contestar que o Mundial acelerou os progressos no nosso país", mesmo que "ainda haja trabalho a fazer".
Embora a Anistia Internacional, assim como a OIT, reconheça os vários progressos recentemente realizados pelo Catar em matéria de direito trabalhista — o fim do sistema que obrigava os trabalhadores a ter o consentimento do seu empregador para mudar de emprego, a adoção de medidas que restringem um pouco mais os horários de trabalho no verão e de uma temperatura limite que proíba qualquer trabalho —, estas ainda são consideradas insuficientes.
"A nova legislação sobre o trabalho sob forte calor não vai suficientemente longe em nossa opinião, especificamente sobre a questão das pausas necessárias: cabe aos trabalhadores pedir ao seu empregador que faça uma pausa, quando essa iniciativa deveria ser obrigatória e não estar a cargo do trabalhador", lamenta Lola Schulmann, da Anistia, enquanto a OIT destaca que "muitos trabalhadores continuam enfrentando dificuldades quando pretendem deixar seu emprego e encontrar outro, com represálias por parte do empregador que, por exemplo, pode revogar a autorização de residência dos trabalhadores ou fazer falsas acusações de 'fuga' contra eles".
"A lei do Catar tem dado as costas para a grave violação dos direitos humanos pelas empresas, que são as primeiras beneficiárias desse sistema de escravidão moderno. Se as normas fossem adaptadas para fazer com que as multinacionais respeitassem os direitos dos estrangeiros e se fossem proferidos julgamentos exemplares, poderíamos evitar um próximo desastre humano e ecológico", conclui Marie-Laure Guislain.
1 de dezembro de 2022 Remove palavra repetida no sétimo parágrafo
29 de novembro de 2022 Adiciona espaço no título