O Projeto de Lei 3.369 não pretende “legalizar o incesto”, mas ampliar o reconhecimento de famílias pelo Estado
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- Publicado em 27 de agosto de 2019 às 18:59
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- Por AFP Brasil
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“DENUNCIE ESSA pouca vergonha é muita falta do que fazer. Quem votou nesses pervertidos?”, diz a legenda de uma das publicações, compartilhada mais de 4 mil vezes no Facebook desde 19 de agosto.
As postagens viralizaram depois que a Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM) da Câmara dos Deputados colocou a votação do PL na pauta do dia 21 de agosto. Após a repercussão nas redes, a proposta foi retirada da agenda para “aprimoramento do texto”.
“Casamento entre pais e filhos”
Segundo as publicações viralizadas, o PL em questão regulamentaria o casamento entre “um pai com seu filho, o pai com a filha, mãe com filha, mãe com um filho, ou qualquer combinação entre pais e filhos”. Para justificar tal afirmativa, as postagens mencionam o artigo 2º da proposta.
No entanto, o trecho não faz qualquer menção a casamentos, mas a núcleos familiares: “São reconhecidas como famílias todas as formas de união entre duas ou mais pessoas que para este fim se constituam e que se baseiem no amor, na socioafetividade, independentemente de consanguinidade, gênero, orientação sexual, nacionalidade, credo ou raça, incluindo seus filhos ou pessoas que assim sejam consideradas”.
Em nota oficial publicada na página Vermelho.org, o deputado Orlando Silva (PCdoB-SP) explicou que o projeto tem como objetivo ampliar o reconhecimento de famílias pelo Estado, incluindo núcleos formados por pessoas sem laços sanguíneos.
“Quando o projeto diz ‘independentemente de consanguinidade’, está se referindo às milhares de famílias, sejam de casais héteros ou homoafetivos, formadas a partir do generoso ato da adoção legal de crianças”, disse na nota.
Em posicionamento oficial enviado ao AFP Checamos, o deputado Túlio Gadêlha, que emitiu parecer pela aprovação do PL na Comissão de Direitos Humanos e Minorias, acrescentou que o projeto também quer o reconhecimento de “uma família formada por parentes, como avós e netos ou tios e sobrinhos, por exemplo”.
“Ter um conceito de família amplo é importante para que essas novas concepções possam ter acesso a programas sociais, por exemplo. Esse reconhecimento está em relatórios da ONU, no STF, só não houve no Legislativo”, afirmou Gadêlha em entrevista ao Comprova, coalizão de checagem integrada pela AFP.
O que dizem especialistas
A professora de Direito de Família da Universidade Federal Fluminense (UFF) Fernanda Pimentel, considerou a interpretação indicada por Orlando Silva e Túlio Gadêlha como a mais provável.
Para a especialista, o projeto tem como objetivo regulamentar casos que já são reconhecidos em tribunais, como “quando um padrasto cria uma enteada, ou um enteado, ou um tio que crie sobrinhos”, disse, em entrevista ao AFP Checamos.
Essa regulamentação tem diversas consequências jurídicas, como o direito à herança, a benefícios previdenciários e à dedução do dependente no Imposto de Renda, afirmou.
A professora destacou, contudo, que o Projeto de Lei traz conceitos muito abertos, o que possibilita múltiplas interpretações, inclusive a mencionada nas postagens viralizadas. “O texto, realmente, quando ele usa essa técnica das cláusulas gerais, ele o faz de maneira muito genérica. Se eu quiser, eu conduzo esse texto para uma interpretação bastante ampla, permitindo essas relações”, disse Pimentel.
Essa opinião é reforçada pela presidente da Comissão de Direito da Família da OAB Pernambuco, Virgínia Baptista. Para a advogada, o ponto do projeto que permitiria interpretações divergentes do objetivo dos autores é o uso da expressão “independentemente de consanguinidade”.
“Abre brecha, sim, para relações incestuosas, eu acho que é bem claro no texto dele. Talvez ele precisasse rever esse trecho da lei. A questão da consanguinidade é uma vedação e isso não vai poder ser superado”, afirmou em entrevista ao Comprova.
Fernanda Pimentel pontuou, contudo, que o Projeto de Lei não seria interpretado de maneira isolada, mas levando em consideração todas as outras normas e costumes da sociedade – tornando improvável a “acolhida da relação incestuosa”.
“Quando o projeto fala que a família é toda forma de união entre duas ou mais pessoas que para este fim se constituam e que se baseiem no amor, na socioafetividade, independentemente de consanguinidade, gênero e orientação, ele está transferindo para o Judiciário a possibilidade de aplicar isso ao caso concreto. Só que, diferentemente desse pânico instalado, essa interpretação não é solta. Ela é feita a partir da Constituição e do sistema jurídico vigente”, disse Pimentel.
Atualmente, o casamento entre pais e filhos e entre irmãos é proibido pelo artigo 1.521 do Código Civil. Para que o PL permitisse este tipo de relacionamento, explica Pimentel, precisaria haver uma revogação tácita do artigo, ou seja, quando se presume que a lei anterior foi revogada.
“Só que revogação tácita tem que ser reconhecida pelos tribunais. E toda orientação jurisprudencial do direito brasileiro é no sentido de valorizar esse interdito na formação da família brasileira, que é a vedação da relação incestuosa. Então, eu não creio que o Projeto de Lei encaminharia para a acolhida dessa relação incestuosa”, afirmou.
Retirado da pauta
Após a repercussão nas redes sociais, a votação do PL foi retirada da pauta do dia 21 de agosto pela Comissão de Direitos Humanos e Minorias.
Em nota de esclarecimento publicada no site da Câmara dos Deputados, o presidente da Comissão, Helder Salomão (PT-ES), afirmou que o projeto tem sido objeto “de interpretações distorcidas” e que por isso, a pedido do relator, retirou o PL da pauta para “aprimoramento de sua redação por meio da elaboração de substitutivo”.
Um substitutivo é um tipo de emenda que altera a proposta, recebendo este nome porque substitui o projeto original.
Em entrevista à Rádio Câmara em 21 de agosto, o deputado Orlando Silva esclareceu que pediu que Túlio Gadêlha redigisse o substitutivo para atender às “pessoas de boa fé que querem esclarecimento” e para que “não pairem dúvidas quanto aos nossos objetivos”.
Em entrevista ao Comprova, Túlio Gadêlha afirmou que pretende “continuar abrangendo todos esses formatos de família, mas excluir esse entendimento deturpado que parte da bancada evangélica tem feito”. “Eu acho importante a gente, que está nesse campo do Legislativo, ter a sensibilidade de compreender o olhar de outros parlamentares”, disse.
O deputado chegou a reconhecer que a redação do PL pode deixar em aberto interpretações divergentes, mencionando o caso da poligamia, que, segundo algumas publicações viralizadas, seria legalizada com o projeto.
“De fato, o projeto, lendo-se, pode compreender uma configuração de família, como vem sendo colocado, pela poligamia. São reconhecidas como formas de família união de duas ou mais pessoas”. Apesar disso, ele enfatizou que não concorda com essa avaliação, feita também por outros parlamentares.
O projeto ainda deverá ser analisado pelas comissões de Seguridade Social e Família e de Constituição e Justiça e de Cidadania.
Em resumo, são enganosas as publicações que atribuem ao PL 3369/2015 a intenção de legalizar o incesto. Segundo seu autor, a proposta tem como objetivo ampliar o reconhecimento de famílias pelo Estado brasileiro. Para uma especialista em Direito de Família entrevistada pela AFP, esta é a interpretação mais provável, apesar de reconhecer que o projeto possibilita múltiplas interpretações. Após a repercussão nas redes sociais, a votação do texto foi retirada da pauta de comissão parlamentar.
Esta investigação foi realizada com apoio do Projeto Comprova. Participaram jornalistas da AFP e do Jornal do Commercio.