
Legislação não permite que Trump conceda cidadania a Bolsonaro para torná-lo embaixador dos EUA
- Publicado em 12 de março de 2025 às 19:16
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- Por AFP Brasil
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“NOTÍCIA: D.Trump vai decretar Jair Messias Bolsonaro, cidadão americano, e nomear ele embaixador dos Estados Unidos no Brasil, dando imunidade diplomática total, ampla e irrestrita”, dizem publicações compartilhadas no Instagram, no Facebook, no Threads e no TikTok, junto a uma foto de Trump e Bolsonaro juntos.

A alegação começou a circular em janeiro de 2025, após a posse de Donald Trump para o seu segundo mandato como presidente dos Estados Unidos.
O início de sua gestão está sendo marcado pela imposição de tarifas econômicas a diversos países, entre eles o Brasil, o que vem gerando reações do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Em contrapartida, Trump mantém uma relação amistosa com a família do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).
Em fala a jornalistas em janeiro de 2025, Bolsonaro chegou a sugerir que Trump poderia ajudar a reverter a sua inelegibilidade, decretada por abuso de poder político e de uso indevido de meios de comunicação nas eleições de 2022. “Ele não vai admitir certas pessoas pelo mundo perseguindo opositores”, disse.
Até o fechamento deste texto, a gestão de Trump não havia indicado um embaixador dos Estados Unidos para o Brasil. No entanto, a legislação norte-americana não permite ao presidente conceder cidadania a Bolsonaro para torná-lo embaixador.
Legislação restrita
Uma busca no site uscode.house.gov – site da Câmara dos Representantes dos Estados Unidos que consolida leis – pelo termo “imigração”, em inglês, levou ao capítulo de Nacionalidade e Naturalização da Lei de Imigração e Nacionalidade, de 1952.
Segundo o disposto no texto, uma pessoa pode ser considerada nacional e cidadã norte-americana por nascimento ou por naturalização após cumprir requisitos como ser residente permanente do país há pelo menos cinco anos, submeter-se a um teste de cidadania para provar conhecimentos do país e do idioma, e ser de “bom caráter moral”.
A lei também descreve que “a única autoridade para naturalizar pessoas como cidadãos dos Estados Unidos é conferida ao Procurador-Geral”, em tradução livre para o português.
De acordo com Carlos Frederico Coelho, professor do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio, isso significa que a autoridade formal que chefia o processo de naturalização é do procurador, mas ela pode ser delegada.
No entanto, Coelho ressalta que “não há caminho” para Trump conceder cidadania a Bolsonaro: “A lei não autoriza ao presidente dos Estados Unidos a concessão de cidadania por decisão executiva, nem oferece qualquer outro caminho para tanto”.
Solano de Camargo, professor de Direito Internacional Privado na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), compartilha o entendimento e acrescenta que, para se tornar cidadão norte-americano, é necessário passar por um exame e jurar lealdade ao país.
“Mesmo a cidadania honorária, que já foi concedida a Winston Churchill e Madre Teresa de Calcutá, não confere direitos jurídicos, como o de assumir cargos diplomáticos ou representar o governo dos Estados Unidos”, assinala o professor.
Nacionalidade do embaixador
As peças de desinformação também abordam a possibilidade de Bolsonaro se tornar embaixador.
Assim como no Brasil, nos Estados Unidos a indicação de autoridades diplomáticas é feita pelo presidente da República e aprovada pelo Senado.
A Convenção de Viena de 1961, que dispõe sobre as relações diplomáticas, prevê no artigo 8 que “membros do pessoal diplomático da Missão deverão, em princípio, ter a nacionalidade do Estado acreditante”.
O documento permite exceções, desde que aprovadas pelo Estado anfitrião. Da mesma forma, o governo anfitrião deve aceitar a indicação diplomática do país representado.
“Isso significa que, em teoria, um estrangeiro poderia ser embaixador, se o Estado anfitrião concordasse, mas, na prática, essa é uma situação raríssima. Outros artigos da Convenção reforçam a soberania do país anfitrião para aceitar diplomatas, como o artigo 4, que prevê que o Estado receptor pode recusar a nomeação de um embaixador, sem qualquer necessidade de justificativa”, explica Camargo.
Por conta disso, o professor avalia que, na prática, não é possível a indicação de Bolsonaro para a embaixada dos Estados Unidos no Brasil com ou sem cidadania norte-americana, ressaltando que o país nunca nomeou um “não cidadão” para o cargo.
“Mesmo que Bolsonaro obtivesse cidadania estadunidense, sua nomeação como embaixador dos Estados Unidos no Brasil enfrentaria obstáculos quase intransponíveis. Além da exigência de aprovação pelo Senado dos Estados Unidos, que dificilmente aceitaria um ex-chefe de Estado brasileiro como seu representante, o governo Lula poderia recusar suas credenciais, inviabilizando sua atuação no cargo. Além disso, a nomeação violaria a tradição diplomática e os interesses estratégicos dos Estados Unidos, tornando essa hipótese politicamente impossível”, avalia.
Carlos Frederico Coelho concorda, ao ressaltar que uma possível indicação de Bolsonaro precisaria ser aceita pelo Senado norte-americano e pelo governo brasileiro. Para ele, a alegação viral é algo “dissociado de uma realidade potencial”.
Imunidade diplomática
Outro ponto abordado pelas peças de desinformação é que Bolsonaro poderia ter “imunidade diplomática total, ampla e irrestrita”, caso se tornasse embaixador.
Embaixadores e agentes diplomáticos, de fato, possuem imunidade no país em que estão cumprindo missão diplomática. Mas, diferentemente do que afirma o conteúdo, ela não é irrestrita e pode ser retirada.
O artigo 37 da Convenção de Viena dispõe que a imunidade de jurisdição civil e administrativa não se estende aos atos praticados fora do exercício das funções diplomáticas.
Ainda segundo o documento, a imunidade do agente diplomático é válida apenas no país em que ele cumpre missão diplomática.
Conteúdos similares também foram verificados por Aos Fatos, Agência Lupa, Estadão Verifica e UOL Confere.
Referências
- Capítulo Nacionalidade e Naturalização da Lei de Imigração e Nacionalidade dos EUA
- Convenção de Viena sobre as Relações Diplomáticas de 1961
- Solano de Camargo, professor de Direito Internacional Privado na Faculdade de Direito da USP
- Carlos Frederico Coelho, professor do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio
- Página do Senado dos Estados Unidos