Texto viral mente ao dizer que Rubens Paiva abrigou a VPR, de Lamarca, em sítio em Juquitiba

  • Publicado em 13 de março de 2025 às 20:32
  • 11 minutos de leitura
  • Por AFP Brasil
Em 1971, o ex-deputado federal Rubens Beyrodt Paiva (PTB) foi torturado e morto pela ditadura brasileira após militares encontrarem cartas de exilados políticos do Chile endereçadas a ele. Com a repercussão do filme “Ainda Estou Aqui”, que retrata o caso, circula nas redes sociais que Paiva teria sido morto por possuir ligações com a organização de guerrilha VPR, de Carlos Lamarca, a quem teria abrigado em um sítio em Juquitiba (SP). É falso: segundo documentos, historiadores e um ex-integrante da VPR consultados pela AFP, Paiva não tinha envolvimento com a organização e nem conhecia Lamarca.

“Rubens Paiva, o mártir que matou muita gente” e “Rubens Paiva, o FALSO Mártir”, intitula-se o texto que circula no Facebook, no Threads e no Instagram. O conteúdo viral é atribuído a “Braulio Flores”.

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Captura de tela feita em 12 de março de 2025 de uma publicação no Facebook (.)

O conteúdo circula desde, pelo menos, janeiro de 2025, mas voltou a ser compartilhado após o longa-metragem “Ainda Estou Aqui” conquistar, em 3 de março, o primeiro Oscar para o cinema brasileiro, como Melhor Filme Internacional. O longa é baseado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, filho mais novo do deputado Rubens Paiva. A obra conta a história do desaparecimento do seu pai durante a ditadura e de como sua mãe, Eunice Paiva, lutou para que a morte do marido fosse reconhecida.

O ex-parlamentar e engenheiro foi levado de sua casa no Rio de Janeiro em 20 de janeiro de 1971 por agentes do Centro de Informações da Aeronáutica (Cisa). No filme, a prisão é motivada por cartas de militantes políticos exilados no Chile que estavam endereçadas ao ex-deputado.

Segundo o texto viral, porém, Rubens Paiva teria sido preso e torturado pelo regime militar por um suposto envolvimento com o grupo de guerrilha Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), liderado por Carlos Lamarca, um militar que havia desertado do Exército. O conteúdo afirma que a VPR, inclusive, teria usado como base um sítio de Paiva na região de Juquitiba, em São Paulo.

Mas essas e outras alegações contidas no conteúdo viral são falsas. Além disso, o suposto autor do texto, “Braulio Flores”, negou tê-lo escrito. Veja a seguir:

Paiva foi eleito pelo PTB, não pelo MDB

“O deputado Rubens Paiva, eleito pelo MDB, na verdade era um militante do PCB (Partido Comunista Brasileiro). Paiva além de político, era engenheiro de formação, e por ter uma empresa, que possuía fluxo de caixa rotativo, foi designado como ‘lavador de dinheiro’ do Partido Comunista”, diz o texto.

Na realidade, Rubens Paiva foi eleito deputado federal por São Paulo em 1962 pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), e não pelo Movimento Democrático Brasileiro (MDB). Logo depois do golpe de Estado de 1964, ele teve seu mandato cassado pelo primeiro Ato Institucional. Após deixar o Brasil em junho do mesmo ano, retornou ao país em 1965.

Sobre a suposta ligação com o PCB citada no texto viral, o historiador Rodrigo Patto Sá Motta, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), disse à AFP desconhecer registros históricos nesse sentido:

“Não conheço qualquer fonte que aponte Paiva como militante comunista, nem fontes da esquerda, nem fontes militares. O que se sabe é que ele intermediou mensagens para grupos que resistiam à ditadura, como aliás mostra o filme. Mas isso não significa que ele fosse um militante desses grupos, e sim alguém que repudiava a ditadura”

“A colaboração que Paiva pode ter oferecido a grupos de resistência — reiterando que há escassas evidências que comprovem isso — não pode ser usada para justificar ou amenizar as atrocidades cometidas contra ele pela ditadura militar”, acrescentou.

Localizações não coincidem

Também segundo o texto, “a VPR tinha como base, um sítio de Paiva na região de Juquitiba, uma área de floresta fechada, no sul do Estado de São Paulo”.

O pai de Rubens Paiva, Jaime Almeida Paiva, possuía efetivamente uma propriedade - a Fazenda Caraitá - em Eldorado, cidade no Vale do Ribeira paulista, região onde a VPR ergueu uma base de treinamento. Mas a guerrilha e a fazenda ficavam em cidades distintas, e a mais de 100 km de Juquitiba.

O centro de treinamento da VPR de Lamarca foi estabelecido entre os municípios de Cajati e Jacupiranga. Um relatório do Exército da década de 1970, que descreve a “Operação Registro” — para capturar Lamarca e desarticular a VPR -,  especifica que a base de treinamento ficava, mais precisamente, na região conhecida como Capelinha.

Entre Capelinha e Eldorado, há uma distância de aproximadamente 60 quilômetros.

Já Juquitiba, citada no texto viral, fica a cerca de 170 quilômetros de Eldorado e a quase 180 quilômetros de distância de Capelinha.

Veja no mapa abaixo:

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Mapa criado no Google Earth com as localizações aproximadas do centro de treinamento da VPR, da fazenda de Jaime Paiva e da cidade de Juquitiba (.)

Lamarca cruzou terras da família Paiva entre Eldorado e Jacupiranga

Em uma sessão de 3 de setembro de 2014 na Câmara dos Deputados, o ex-presidente Jair Bolsonaro (à época, deputado federal pelo PP-RJ) mencionou uma suposta chácara que pertenceria a Rubens Paiva na região da Fazenda Caraitá, em uma tentativa de vincular a figura do ex-deputado à de Lamarca.

Mas, em um texto publicado em 2019 por Marcelo Rubens Paiva no jornal O Estado de S. Paulo, o filho de Rubens afirma que eram seus tios, e não seu pai, que tinham terras na região:

“Eles, sim, como meu avô, tinham terras anexas por lá. Meu pai chegou a comprar um terreno longe, do outro lado do rio, com o que ficou por pouco tempo, que ficou abandonado, e repassou ao meu tio Carlos em 1967”, escreveu.

O autor detalha também no texto que Rubens Paiva não convivia com Jaime, por divergências políticas. “Raramente meu pai ia ao Vale do Ribeira”, afirma.

Em uma coluna publicada no jornal Folha de S. Paulo em 1994, Marcelo Rubens Paiva chegou a narrar um episódio em que Lamarca cruzou as terras de sua família:

“A família Paiva tinha uma fazenda, entre Eldorado e Jacupiranga, vizinha ao campo de treinamento da VPR. Duas gerações, a do meu pai e a minha, cresceram na região. Lamarca cruzou nossas terras. Meu tio Jaime [além de seu pai, Rubens Paiva também possuía um irmão chamado Jaime] acenou para ele, pouco antes do tiroteio com a Força Pública de Eldorado. Minha tia Nícia pulou o carnaval de 1970 com Lamarca no clube Caraitá. O tiroteio foi a metros da fazenda, ao lado da Escola Jaime Paiva. Lamarca atravessou também o sítio 0K, do meu tio Carlos, e seguiu para Sete Barras, pela ponte construída pelo meu pai”.

O autor afirma, ainda, que o episódio gerou uma busca por vínculos entre o guerrilheiro e sua família: “Após o tiroteio, a fazenda chegou a ser cercada e invadida por soldados da Marinha, que procuravam armas e ligações entre os Paiva e Lamarca. Muitos empregados e amigos da família foram presos e torturados”

Sem evidências de envolvimento com a VPR ou com a luta armada

Diferentemente do que alega o texto viral, documentos consultados e historiadores ouvidos pelo AFP Checamos não indicam qualquer evidência de um elo entre Rubens Paiva e a VPR ou Carlos Lamarca.

Daniel Aarão Reis Filho, historiador e professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), disse que o ex-deputado tinha “contatos políticos mais ou menos regulares” com o Movimento Revolucionário Oito de Outubro (MR-8), especificando que Paiva “nunca teve participação em qualquer tipo de ação armada ou desarmada empreendida pelo MR-8”.

Pouco antes de sua morte, em março de 1971, Lamarca desligou-se da VPR para ingressar no MR-8. Nesse momento, Rubens Paiva já havia sido sequestrado pelo regime militar, e os especialistas ouvidos pela AFP indicam que ambos (Lamarca e o ex-deputado) não se conheciam.

“Paiva nunca teve ligação com a VPR ou o PCB, sequer conhecia pessoalmente Lamarca, que se saiba. Não há qualquer indício sobre isso”, afirmou Marcelo Ridenti, professor de Sociologia na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Chizuo Osava, que integrou a VPR e ficou conhecido pelo codinome “Mario Japa”, também disse à AFP que desconhece qualquer ligação de Rubens Paiva com a organização: “Que eu saiba, ele nunca teve nenhuma relação com a VPR, nem conheceu o Lamarca”.

Em 2012, Carlos Alberto Muniz, que integrou o MR-8 sob o codinome “Adriano”, deu mais detalhes sobre sua conexão com Rubens Paiva em uma entrevista publicada no jornal O Globo e ressaltou que o engenheiro civil não era integrante da organização. Ambos haviam se conhecido porque Paiva havia ajudado a tirar do Brasil a filha de um amigo.

“Eu era o Adriano. Sou um sobrevivente. Rubens foi barbaramente torturado e não me entregou. Ele não era pombo-correio, não pertencia a grupo armado, não conhecia Lamarca. Rubens era uma referência, por sua grande experiência política. Gostava de trocar ideias com todos que estavam na oposição, inclusive os mais jovens, sobre a redemocratização e ajudava perseguidos a sair do Brasil”, disse Muniz.

A morte de Rubens Paiva

Tampouco é verdade que Rubens Paiva tenha sido preso e torturado pela ditadura por ter ligações com sequestros de voos pela VPR.

“Um documento do próprio Serviço Nacional de Informações, órgão da ditadura, desmente a informação”, explica a historiadora Caroline Silveira Bauer, integrante do Laboratório de Estudos sobre os Usos Políticos do Passado (Luppa) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). “Segundo esse documento, Rubens Paiva foi preso porque era destinatário de algumas cartas que foram encaminhadas por exilados no exterior. Ele deveria redistribuir essas cartas para colegas e familiares dos remetentes”.

O episódio que culminou na prisão de Rubens Paiva também é registrado no Relatório Preliminar de Pesquisa da Comissão Nacional da Verdade sobre o caso Rubens Paiva, de 2014. O documento atesta que o ex-parlamentar foi preso porque, na madrugada do dia 20 de janeiro de 1971, agentes da Cisa detiveram duas passageiras vindas de um voo proveniente do Chile: Cecília de Barros Correia Viveiros de Castro e Marilene de Lima Corona. Com elas, “foram encontradas diversas cartas de exilados políticos no Chile para serem entregues no Rio de Janeiro. Um dos destinatários das cartas era Rubens Paiva”, diz o relatório.

No mesmo dia, os agentes da Aeronáutica foram à casa do deputado no Rio de Janeiro e o levaram para interrogatório, em seu próprio carro, “para o Quartel da 3ª Zona Aérea, localizado ao lado do aeroporto Santos Dumont, à época comandado pelo Tenente-Brigadeiro João Paulo Moreira Burnier, onde sofreu as primeiras torturas”.

Em seguida, Paiva foi levado para o Destacamento de Operações de Informações do I Exército (DOI) no bairro da Tijuca, junto com Cecília Viveiros de Castro e Marilene de Lima Corona.

A Comissão Nacional da Verdade (CNV) ouviu militares pertencentes aos quadros do 1º Batalhão de Polícia do Exército que relataram ter presenciado a tortura sofrida por Rubens Paiva no DOI, que resultou em sua morte.

Outras inconsistências

Ainda segundo o texto, Lamarca teria discutido com Paiva, deixado o suposto sítio do deputado em Juquitiba, adentrado na selva e combatido uma tropa da Polícia Militar, matando o PM Alberto Mendes Junior. “O Diógenes do Jogo do Bicho (militante petista) também participou do crime”, diz o conteúdo.

As datas dos fatos narrados, porém, não coincidem.

“O Diógenes a quem se refere é Diógenes de Oliveira, que saiu do Brasil banido, comigo, em março de 1970”, disse à AFP Chizuo Osava. 

De fato, em março de 1970, a VPR sequestrou o cônsul do Japão Nobuo Okuchi em troca da libertação de cinco prisioneiros, dentre eles Osava e Diógenes de Oliveira. As condições foram atendidas e, no dia 16 de março daquele ano, a Folha de S. Paulo publicou que “os presos e as crianças chegaram ao México às 6h30 de ontem, hora local”, ou seja, no dia 15 de março de 1970. Diógenes só retornou ao Brasil na década de 1980.

Já a Operação Registro, que culminou na morte do tenente Mendes Júnior, teve início no dia 19 de abril de 1970, segundo o relatório elaborado pelo próprio Exército, à época. A morte do tenente Mendes Júnior é situada em 10 de maio de 1970, segundo o relatório, data em que Diógenes já estava fora do país havia quase dois meses.

“A história das dezenas de aviões capturados é uma licença poética do autor”, acrescenta Daniel Aarão Reis Filho. “Bem que as esquerdas revolucionárias na época desejariam ter força para empreender tantas ações. Na verdade, alguns aviões foram capturados e redirigidos para Cuba”.

Suposto autor do texto nega a autoria

Uma pesquisa no Google pelos termos “Rubens Paiva” e “Braulio Flores”, creditado como suposto autor do texto nos conteúdos virais, levou a uma publicação feita em fevereiro de 2025 pelo comandante do 9º Comando Regional dos Bombeiros, o coronel Bráulio Flores, na qual o militar nega ter escrito o texto viral.

“Eu NUNCA escrevi um texto sobre o Deputado Rubens Paiva”, diz a publicação do coronel no Facebook. Flores também publicou um vídeo sobre o tema em 3 de março de 2025, negando novamente ser o autor do conteúdo falso sobre Paiva.

Este conteúdo também foi checado por Estadão Verifica e UOL Confere.

Referências

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