Nota bancária palestina com texto em hebraico que circula nas redes é de 1948, não de 1929

Uma imagem de uma cédula monetária do Banco Anglo-Palestino, que circula desde 2021 e voltou a ser compartilhada, não mostra um bilhete de 1929, como alegam  usuários de redes sociais. Segundo as publicações, compartilhadas centenas de vezes, a nota, com inscrições “em hebraico”, seria uma prova de que o Estado de Israel já existia antes de ter sido criado oficialmente, em maio de 1948. Mas isso é falso: a cédula viralizada só começou a circular em agosto de 1948, como explicaram diversos especialistas à AFP. Além disso, em seu verso, o bilhete também traz dizeres em árabe.

“Uma nota do banco de Palestina em 1929 ! Messagem a todos que pensam que Israel foi criado depois da Shoah [Holocausto] em tomar posse das terras árabes de Palestina”, diz o texto de uma das mensagens que circulam no Facebook.

A mesma imagem circula na rede desde, pelo menos, junho de 2021.

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Captura de tela feita em 12 de março de 2024 de uma publicação no Facebook (.)

O conteúdo é compartilhado também em inglês e francês, em meio ao conflito israelense-palestino desencadeado em 7 de outubro de 2023. Nessa data, o grupo islamista palestino Hamas lançou uma ofensiva sem precedentes contra Israel, deixando 1.140 mortos e sequestrando cerca de 250 pessoas, das quais 130 permanecem reféns, segundo autoridades israelenses. O governo estima que 32 delas tenham morrido.

Em represália ao ataque, o governo de Israel declarou guerra contra o Hamas e prometeu esmagar" o grupo. Desde então, mais de 31.000 pessoas morreram na Faixa de Gaza, segundo o Ministério da Saúde do Hamas, que governa o território palestino.

Como indicado pelos usuários, a nota apresenta palavras escritas em hebraico, que indicam o seu valor e o nome do emissor da cédula. Há também dois elementos escritos em inglês: "One Palestine Pound" (“uma libra palestina”, em tradução livre) e "The Anglo-Palestine Bank Limited" (“Banco Anglo-Palestino”, em português).

No entanto, as informações contidas nas publicações não são precisas: segundo diversos especialistas ouvidos pela AFP, essas notas bancárias não existiam em 1929, quando o território palestino ainda estava sob mandato britânico, como determinado pela Liga das Nações (antecessora da ONU).

“Essa cédula não circulava em 1929 (...) Trata-se de uma das notas colocadas em uso pelo Banco Anglo-Palestino”, que começaram a circular em Israel em “agosto de 1948” — ou seja, após a proclamação do Estado de Israel —, disse à AFP Paul Wilson, em 8 de março. Wilson é autor do livro “Shades of Sovereignty: Money and the Making of the State”, sobre a história dos sistemas monetários mundiais e sua relação com a criação e a soberania dos países.

Howard M. Berlin, autor do livro “The Coins and Banknotes of Palestine under the British Mandate, 1927-1947”, sobre o sistema monetário palestino nesses anos, também afirmou à AFP que “não é possível” que tal nota circulasse em 1929.

Além disso, as inscrições em hebraico na cédula não têm nenhum significado histórico particular, uma vez que também incluíam as mesmas inscrições em árabe no verso. Isso pode ser visto na imagem abaixo, retirada do site do Banco de Israel destinado a essa série de cédulas distribuídas pelo Banco Anglo-Palestino.

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Captura de tela feita do site do Banco de Israel em 11 de março de 2024 (.)

Essas cédulas foram postas em circulação no verão de 1948 pelo Banco Anglo-Palestino, para o Estado de Israel que havia sido proclamado poucos meses antes, e na verdade sucederam um tipo anterior de libra palestina, que emanava de uma organização diferente: o Conselho Monetário da Palestina sob mandato britânico.

Notas trilíngues a partir de 1926

Consultada pela AFP em 8 de março de 2024, Sreemati Mitter, pesquisadora no Instituto para Estudos Avançados de Toulouse, da Universidade Toulouse Capitole, explicou que “as autoridades britânicas emitiram uma moeda chamada ‘libra palestina’”, que era “a moeda oficial da Palestina mandatária, entre 1927 e 1948”.

A especialista, autora de uma tese na Universidade de Harvard intitulada “A história do dinheiro na Palestina” (2014), detalhou: “O Mandato Britânico para a Palestina vigorou de 1920 a 1948, e a Grã-Bretanha, como administradora colonial da Palestina mandatária, distribuiu sua moeda e estabeleceu — como em suas outras colônias — um Conselho Monetário para garantir a gestão dessas reservas”.

Esse conselho com sede em Londres, criado em 1926, começou a emitir a libra palestina em 1927. Imagens dessa moeda podem ser encontradas no site da The Holy Land Mint (Casa da Moeda da Terra Santa, em tradução livre), uma antiga agência governamental israelense (privatizada em 2008) responsável por celebrar eventos significativos na história de Israel.

Como é possível ver na página dedicada à libra palestina emitida durante o mandato britânico, essas notas traziam, em inglês, a menção "Palestine Currency Board" (“Conselho Monetário da Palestina”, em português), assim como textos em hebraico e árabe.

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Captura de tela feita em 11 de março de 2024 do site The Holy Land Mint (.)

Como lembrado por Howard M. Berlin, a obrigação de utilizar as três línguas estava prevista no Artigo 22 do Mandato para a Palestina da Liga das Nações, que previa: "Inglês, árabe e hebraico serão as línguas oficiais da Palestina. Todas as indicações ou inscrições em árabe em selos ou moeda também aparecerão em hebraico e vice-versa".

“Por respeito às três religiões praticadas no país, estas notas foram decoradas com símbolos e locais emblemáticos para judeus, cristãos e muçulmanos: o Túmulo de Raquel, a Cúpula da Rocha e a Torre Branca de Ramla”, detalha ainda o site da Casa da Moeda da Terra Santa, especificando também que o verso da nota estava ilustrado com a Cidadela de Jerusalém, símbolo da cidade comum às “três religiões”.

O site também especifica que “estas notas permaneceram em circulação até 18 de agosto de 1948, quando deram lugar à moeda do Banco Anglo-Palestino”, incluindo as notas de uma libra palestina representadas de maneira distorcida nas redes sociais como se datassem de 1929.

Da “libra palestina” do mandato britânico à “libra palestina” do Estado de Israel

No entanto, muitos obstáculos práticos e políticos tiveram de ser superados para que essa nova moeda pudesse substituir a anterior, recorda Paul Wilson.

“O Banco Anglo-Palestino, fundado em 1902” em Londres, foi assim encarregado, poucos meses antes do final do mandato britânico, “de encomendar a moeda destinada a substituir a libra palestina” utilizada nesse período.

Ou, como explica o Banco de Israel em seu site, "dado que o nome [do] novo Estado [Israel] ainda não tinha sido decidido, surgiu a questão de saber o que seria impresso nos bilhetes."

“As notas não podiam ser impressas neste país, porque o Mandato Britânico ainda não tinha expirado e porque faltava o conhecimento técnico necessário. Também estava claro que nenhuma empresa estrangeira de boa reputação imprimiria a moeda de um Estado [ainda] inexistente. Após um esforço considerável, S. Hoofien, o presidente do Conselho do Banco Anglo-Palestino na época, convenceu a American Banknote Company, em Nova York, a imprimir as notas" , detalha a instituição bancária.

É também o que o banco Leumi – antigo Banco Anglo-Palestino, renomeado Leumi na década de 1950 – explica em seu site: “Apesar da proclamação do Estado de Israel, em 15 de maio de 1948, a moeda do Mandato Britânico ainda estava em uso: o Banco Anglo-Palestino recebeu a missão de estabelecer o sistema monetário desse novo estado. O pedido para a impressão dessa moeda foi feito aos Estados Unidos, enquanto preparava-se simultaneamente um estoque de notas de emergência em Tel Aviv."

Isso é o que explica, como pode ser visto na captura de tela mais abaixo, que essas notas, encomendadas antes da proclamação do Estado de Israel, mantenham o nome “libra da Palestina”, em vigor sob o mandato britânico, sem mencionar o nome “Israel”.

“Quando as notas foram encomendadas, ninguém sabia ainda o nome do futuro novo Estado e muito menos o da sua moeda. Daí a decisão de imprimir nas notas o nome ‘libra da Palestina’, em referência à moeda do mandato [britânico]", explica o Banco de Israel em seu site sobre essas notas que incluem, como suas antecessoras, textos em hebraico, árabe e inglês.

“O Banco Anglo-Palestino já existia em 1902, mas não distribuiu notas bancárias até 1948! De 1927 até a criação do Estado de Israel em maio de 1948, as únicas cédulas (...) autorizadas eram aquelas distribuídas pelo Conselho Monetário da Palestina", resume Howard M. Berlin.

Uma entrega a Israel em agosto de 1948

A Agência Telegráfica Judaica, uma agência de notícias internacional, repercutiu a implementação da nova moeda.

Em despacho de 6 de agosto de 1948, informou que o governo israelense havia decidido "distribuir sua própria moeda, em substituição à atual libra palestina emitida pelo Reino Unido".

“Esta nova moeda recém-impressa já chegou a Israel. Foi gravada nos Estados Unidos há mais de quatro meses, um mês antes de os britânicos renunciarem ao mandato sobre a Palestina”, continuou a agência, especificando que as emissões incluiriam notas de meia libra, uma libra, cinco, dez e 50 libras.

Em 17 de agosto de 1948, a agência noticiou que a moeda deveria entrar em circulação no dia seguinte e detalhou: “A população judaica terá o prazo de um mês para trocar suas libras palestinas emitidas pela Grã-Bretanha. Depois de 15 de setembro, apenas a moeda israelense circulará no país. As antigas notas palestinas serão consideradas moeda estrangeira após esta data".

Posteriormente, como salienta Howard M. Berlin, o Banco Anglo-Palestino tornou-se o banco Leumi ("Banco Nacional") ao estabelecer-se em Tel Aviv e emitiu, em 1952, uma nova moeda, a libra israelita, que substituiu a libra palestina em junho daquele ano. A moeda permaneceu em circulação até 1980, quando a libra israelense foi substituída pelo shekel.

Referências

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