Artigo desinforma sobre mosquitos geneticamente modificados, Bill Gates e dengue no Brasil
- Publicado em 15 de março de 2024 às 17:36
- 5 minutos de leitura
- Por Natalie WADE, AFP Estados Unidos, AFP Brasil
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“A propagação da dengue no Brasil está relacionada à liberação dos ‘mosquitos geneticamente editados’ de Bill”, lê-se em publicações que circulam no Instagram e no X.
Conteúdos similares que apontam essa suposta relação também circulam no Facebook, no Kwai e no Telegram, e em outros idiomas, como inglês, francês e espanhol.
A alegação começou a circular após o país registrar um surto de dengue nos primeiros meses de 2024 com mais de 1,6 milhão de casos prováveis e mais de 490 óbitos confirmados, até a publicação dessa checagem.
Em meio a esse cenário epidemiológico, o Brasil se tornou o primeiro país do mundo a oferecer uma vacina para a dengue em seu sistema público de saúde.
As publicações virais utilizam como fonte um artigo, em espanhol, publicado no site Tierra Pura, e copiam trechos do texto para relacionar o aumento de casos da doença ao “Programa Global de Mosquitos das Nações Unidas, financiado por Bill Gates”.
O autor do texto aponta que “o dinheiro de Bill Gates está envolvido em todos os aspectos da situação, desde os mosquitos geneticamente modificados que possivelmente exacerbaram a crise da dengue até ao financiamento de empresas que fornecem a tão procurada vacina contra a dengue ao Brasil”.
Contudo, esse artigo e as publicações confundem a tecnologia usada no programa da ONU e erram ao dizer que a Fundação de Bill Gates financia “mosquitos geneticamente editados” no Brasil.
Artigo confunde as tecnologias
Uma busca no Google pela frase “Programa Global de Mosquitos das Nações Unidas” levou ao site do World Mosquito Program (WMP), iniciativa que combate doenças transmitidas por mosquitos globalmente.
O WMP começou a atuar no Brasil em 2015 e, de fato, recebe aportes da Fundação Bill e Melinda Gates.
Mas, diferentemente do que alegam as publicações virais, o programa utiliza o método Wolbachia, e não mosquitos geneticamente modificados.
Como descrito no site da iniciativa, esse método consiste em inserir a bactéria Wolbachia em espécimes do Aedes aegypti e soltá-los em determinada área para que, ao reproduzir com mosquitos locais, gerem uma nova população de mosquitos com a bactéria, que é encontrada em diversos insetos, mas não no Aedes aegypti.
Essa bactéria impede o desenvolvimento dos vírus da dengue, zika, chikungunya e febre amarela urbana nos mosquitos. Esse método, por sua vez, não é considerado modificação genética:
“Não há qualquer modificação genética no Método Wolbachia do WMP, nem no mosquito nem na Wolbachia”, destacam os sites do WMP e da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), que conduz o programa no Brasil.
O método Wolbachia não é capaz de infectar humanos e já demonstrou eficácia na redução de 70% de casos de dengue na cidade de Niterói, no Rio de Janeiro. Um estudo realizado na Colômbia também indicou que o método foi associado a uma queda de até 97% nas infecções.
“O artigo está confundindo os fatos”, pontuou Albert Ko, professor da Escola de Saúde Pública de Yale e especialista em doenças microbianas e infecciosas.
Mosquitos modificados não infectam
Mosquitos geneticamente modificados fazem parte de outra técnica aplicada para combater doenças transmitidas pelo Aedes aegypti.
Como explicam os Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos, espécimes do mosquito são produzidos em laboratório para carregar um gene autolimitante, responsável por impedir que as fêmeas sobrevivam até a idade adulta, e um gene marcador, que facilita a identificação.
Ovos colocados por esses mosquitos são soltos em áreas pré-determinadas, gerando outros mosquitos que possuem os dois genes. Uma vez na fase adulta, esses espécimes acasalam com fêmeas do Aedes aegypti disponíveis no local, gerando outras fêmeas que não sobreviverão até a idade adulta. Essa técnica ajuda a evitar a disseminação da doença uma vez que somente as fêmeas do Aedes aegypti picam.
“Não há evidências científicas para apoiar afirmações de que o uso desta intervenção de controle de vetores ou de vacinas contra a dengue são a causa da epidemia”, afirmou à AFP o professor Albert Ko, em 7 de março de 2024.
No Brasil, a empresa britânica de biotecnologia Oxitec é a responsável pelo uso da tecnologia. Joshua Van Raalte, porta-voz da empresa, disse em um e-mail de 7 de março de 2024 à AFP: “Os mosquitos da Oxitec que foram liberados no Brasil são apenas machos, o que significa que eles são incapazes de picar humanos, então a propagação de qualquer doença é cientificamente impossível".
Mas essa técnica já foi alvo de controvérsias. Em 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) afirmou que o uso de mosquitos geneticamente modificados levantava “problemas de ética, segurança e governança”. Os especialistas também estão preocupados com o impacto em longo prazo da modificação genética nos ecossistemas, incluindo na cadeia alimentar.
No Brasil, a cidade de Piracicaba, em São Paulo, não obteve resultados satisfatórios devido à liberação insuficiente de mosquitos, ao passo que Jacobina, na Bahia, também esteve no centro da discussão sobre o uso da tecnologia.
A biossegurança dos mosquitos OGM (Organismos geneticamente modificados) no Brasil foi assegurada pela Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) e a Oxitec recebeu liberação comercial para atuar.
A Agência de Proteção Ambiental dos EUA também já aprovou o método após realizar uma avaliação de risco à saúde humana e ambiental do projeto-piloto. Em seguida, a Flórida e a Califórnia receberam a liberação de mosquitos.
Atuação no Brasil não é financiada por Bill Gates
As publicações também desinformam ao apontar que a Fundação Bill e Melinda Gates financia uma estratégia que utiliza mosquitos geneticamente modificados no Brasil.
De fato, a empresa Oxitec, responsável pela tecnologia no Brasil, já recebeu aportes da fundação para projetos. Mas, uma busca na lista de fundos doados no site da fundação não levou a nenhum projeto envolvendo o combate à dengue no país.
Essa informação foi confirmada por um porta-voz da Fundação Gates à AFP em 11 de março de 2024: “A fundação não financia nenhum trabalho da Oxitec que envolve a liberação de mosquito Aedes aegypti no Brasil”.
Os subsídios descritos no site à Oxitec se referem a projetos de desenvolvimento agrícola e para combate à malária, que, segundo o porta-voz, a fundação está “empenhada em dedicar recursos e conhecimentos especializados para erradicar para sempre”.
O AFP Checamos já verificou outro conteúdo sobre “mosquitos transgênicos” e Bill Gates.