Na verdade, documentos oficiais responsabilizam o Estado brasileiro pela morte de Santa Cruz

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  • Publicado em 31 de julho de 2019 às 17:42
  • Atualizado em 2 de agosto de 2019 às 18:01
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  • Por AFP Brasil
Publicações compartilhadas milhares de vezes desde o último dia 29 de julho afirmam que Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira, pai do atual presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e desaparecido durante a ditadura militar (1964-1985), foi morto por militantes de esquerda. A equipe de checagem da AFP não encontrou, contudo, evidências que corroborem esta afirmação. Por outro lado, a Comissão Nacional da Verdade concluiu que Santa Cruz foi morto por “agentes do Estado brasileiro”. A Comissão sobre Mortos e Desaparecidos Políticos também emitiu, em 24 de julho deste ano, um atestado de óbito declarando que sua morte foi “causada pelo Estado”.

“Confirmado!!! Pai do presidente da OAB foi executado pelos próprios comparsas após ter sido liberado pelo DOI-CODI-RJ [órgão de inteligência subordinado ao Exército durante a ditadura]”, diz uma das publicações, compartilhada mais de 1.600 vezes no Facebook desde 29 de julho. 

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Capturas de tela feitas em 30 de julho de 2019 de dois publicações viralizadas no Facebook e no Twitter

As postagens começaram a circular depois que o presidente Jair Bolsonaro disse saber como o pai do presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, desapareceu durante a ditadura militar. “Se um dia o presidente da OAB quiser saber como é que o pai dele desapareceu no período militar, eu conto para ele”, disse Bolsonaro na última segunda-feira.

“Não foram os militares que mataram ele, não, tá? É muito fácil culpar os militares por tudo que acontece. Isso mudou", afirmou o presidente no mesmo dia, insinuando que a morte de Santa Cruz foi resultado de uma disputa interna de grupos de esquerda.

O pai do presidente da OAB foi militante dos movimentos de esquerda Ação Popular (AP) e Ação Popular Marxista Leninista (APML) durante a ditadura militar. Santa Cruz foi visto pela última vez por sua família quando deixou a casa do irmão, no Rio de Janeiro, durante o carnaval de 1974. Desde então, familiares tem se dedicado a descobrir o que aconteceu com ele.

Em busca por arquivos públicos, a equipe de checagem da AFP não conseguiu encontrar qualquer registro que indique que Santa Cruz tenha sido morto por militantes de esquerda, como alegam as publicações viralizadas.

Por outro lado, diversos documentos e relatórios ligam a morte do militante a agentes da ditadura militar.

O que dizem os documentos?

Um relatório secreto do então Ministério da Aeronáutica, mencionado em documento da Comissão Nacional da Verdade, atesta que Santa Cruz foi preso pelo regime em 22 de fevereiro de 1974, no Rio de Janeiro - mesmo período em que sua família afirma tê-lo visto pela última vez.

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Captura de tela feita em 30 de julho de 2019 mostra conclusão da Comissão Nacional da Verdade referente à morte de Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira

O mesmo relatório da Comissão Nacional da Verdade - órgão fundado em 2011 pelo governo para investigar as violações de direitos humanos durante a ditadura militar - lista duas hipóteses para o que teria acontecido com o militante após esta data, ambas responsabilizando agentes do Estado brasileiro por sua morte.

A primeira possibilidade é que Santa Cruz tenha sido levado do Rio de Janeiro, onde foi capturado, para o DOI-CODI do II Exército, em São Paulo. Essa indicação, afirma o relatório, aponta para a possibilidade de que o corpo do militante tenha sido encaminhado para sepultamento como indigente no Cemitério Dom Bosco, em Perus (SP), frequentemente utilizado para enterrar clandestinamente vítimas do regime ditatorial.

A segunda hipótese, de acordo com o documento, é a de que ele tenha sido encaminhado para a “Casa da Morte” em Petrópolis (RJ) e que, posteriormente, seu corpo tenha sido incinerado na usina de açúcar de Cambaíba, em Campos dos Goytacazes.  Segundo afirmou o ex-agente do Serviço Nacional de Informações (SNI) Cláudio Guerra ao Ministério Público Federal, ao menos 12 pessoas foram incineradas neste local na época.

Por fim, a Comissão Nacional da Verdade conclui que Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira “foi preso e morto por agentes do Estado brasileiro e permanece desaparecido”

Mais recentemente, a Comissão Especial Sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, vinculada à Secretaria de Direitos Humanos, emitiu um atestado de óbito declarando que Santa Cruz “faleceu provavelmente no dia 23 de fevereiro de 1974, no Rio de Janeiro/RJ, em razão de morte não natural, violenta, causada pelo Estado brasileiro”.

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Atestado de óbito de Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira enviado pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos à AFP

A declaração do órgão, publicada em 24 de julho deste ano, afirma que sua morte ocorreu “no contexto da perseguição sistemática e generalizada à população identificada como opositora política ao regime ditatorial de 1964 a 1985”.

A ligação de agentes do Estado com a morte de Santa Cruz também foi reforçada em 2004 com a publicação, pela revista IstoÉ, de uma entrevista com o ex-sargento Marival Chaves, que trabalhou de 1967 a 1985 nos principais órgãos de repressão do Exército brasileiro.

À revista, Chaves afirmou que os coronéis José Brant Teixeira e Paulo Malhães foram responsáveis pelo planejamento e execução de “uma megaoperação em inúmeros pontos do país para liquidar, a partir de 1973, os militantes das várias tendências da Ação Popular (AP)”.

Na entrevista, o ex-sargento listou Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira entre os mortos. 

Em resumo, a equipe de checagem da AFP não encontrou qualquer evidência de que Santa Cruz tenha sido executado por outros militantes de grupos de esquerda durante a ditadura militar. Por outro lado, diversos documentos e relatórios responsabilizam agentes do Estado brasileiro por sua morte.

EDIT 02/08: Corrige o nome do filho de Santa Cruz para Felipe Santa Cruz

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