Protocolo de intenções firmado pelo governo não “entrega” terras indígenas para empresa privada
- Publicado em 4 de fevereiro de 2025 às 18:03
- 4 minutos de leitura
- Por AFP Brasil
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“Governo Lula, na surdina, assinou um acordo em Davos, dando amplos poderes para o grupo Ambipar explorar terras indígenas, e tudo isso sem o consentimento do Congresso”, diz uma das publicações compartilhadas no Facebook, no Instagram, no X e no YouTube.
Alegação semelhante também foi compartilhada por figuras públicas, como o ex-candidato à Presidência monsenhor Kelmon Luis da Silva, mais conhecido como Padre Kelmon, que disse em vídeo que o Ministério dos Povos Indígenas “entregou 14% do território nacional [...] para uma empresa administrar”.
As publicações se referem ao protocolo de intenções assinado pelo Ministério dos Povos Indígenas com a empresa Ambipar durante a programação do Fórum Econômico Mundial de Davos, realizado entre os dias 20 e 24 de janeiro.
Mas as postagens distorcem o conteúdo do documento.
Ações para sustentabilidade e emergência climática
O acordo foi reportado como inédito pela imprensa nacional (1, 2) e trata sobre uma parceria público-privada para apoiar povos indígenas em diferentes áreas, como destinação de resíduos, estruturação para combate a incêndios, monitoramento das terras, abastecimento de insumos, reflorestamento de terras degradadas, desenvolvimento de projetos de bioeconomia, entre outras.
Segundo as reportagens e a divulgação da empresa no Instagram, a iniciativa deve beneficiar uma área de mais de 1 milhão de quilômetros quadrados de territórios dos povos indígenas, o que representa 14% do Brasil.
Em uma entrevista para a CNN Brasil em 24 de janeiro de 2025, a head de Carbon Solutions da Ambipar, Soraya Pires, informou que o acordo estava em fase de elaboração de plano de trabalho e que os recursos para as ações estavam em discussão.
Protocolo de intenção
De acordo com o governo, o protocolo de intenções é um “instrumento formal utilizado por entes públicos para se estabelecer um vínculo cooperativo ou de parceria entre si” para realizar um propósito comum.
O documento é um instrumento jurídico mais sucinto que se diferencia dos demais justamente por não prever a transferência de recursos e bens, “sendo visto como um mero consenso entre seus partícipes, a fim de, no futuro, estabelecerem instrumentos específicos acerca de projetos que pretendem firmar, se for o caso”, ainda segundo o governo.
Sendo assim, não há uma legislação que obrigue a sua publicação no Diário Oficial.
O advogado mestre em Direito Administrativo Marcos Jorge explicou ao Comprova, projeto de verificação colaborativo do qual o AFP Checamos faz parte, que esse tipo de documento pode ser firmado entre entes públicos e também entre o poder público e a iniciativa privada.
Jorge afirmou que o protocolo, nesse caso da Ambipar, irá definir os interesses que o ministério e a empresa irão defender em conjunto: “Esses interesses não são interesses da empresa. Sempre que o poder público estiver presente, o que tem que ser atendido é o interesse público”.
Ainda segundo o advogado, o documento resguarda o interesse dos povos indígenas e não tem relação com a concessão de terra pública ou indígena para o setor privado.
“Nesse caso concreto, a gente não tem a concessão, pois não se transfere a terra para a Ambipar administrar, como em uma concessão se transferiria. Apenas define que em um milhão de quilômetros quadrados de territórios indígenas, a Ambipar irá fomentar e apoiar a gestão territorial indígena”, pontuou Jorge.
Para além das limitações jurídicas desse tipo de documento, a concessão de terras indígenas para exploração ou gestão não é constitucional. O parágrafo 4º do artigo 231 da Constituição Federal de 1988 determina que as terras indígenas “são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis”.
O Ministério dos Povos Indígenas desmentiu as alegações em nota publicada em 26 de janeiro de 2025.
O texto lista algumas ações previstas, destaca que as peças de desinformação não têm “respaldo jurídico” e informa que o protocolo assinado é um “compromisso preliminar”.
“O protocolo em questão tem como foco a assunção de compromissos e iniciativas, e representa um caminho para qualificar e fortalecer a gestão territorial indígena, oferecendo serviços e tecnologias de mais qualidade que só serão utilizados se estiverem previstos nos Planos de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (PGTAs) e contarem com o consentimento dos povos de cada território, respeitando a consulta livre, prévia e informada”, diz a nota.
Esse texto faz parte do Projeto Comprova. Participaram jornalistas do Estadão. O material foi adaptado pelo AFP Checamos.
Referências
- Notícias sobre o protocolo de intenções (1, 2, 3)
- Publicação da Ambipar sobre o protocolo de intenção
- Constituição Federal de 1988
- Explicação sobre protocolo de intenções
- Nota do MPI