Mulher sob uma bandeira no desfile do Orgulho em Estrasburgo, na França, em 18 de junho de 2022 ( AFP / Sebastien Bozon)

O Tribunal Europeu de Direitos Humanos não anulou o casamento entre pessoas do mesmo sexo

O Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH) não decidiu que “não há direito a casamento entre pessoas do mesmo sexo”. Publicações com essa alegação foram visualizadas mais de mil vezes nas redes sociais desde 2017, baseadas em uma interpretação equivocada de uma sentença do TEDH de 2016 relacionada a um casal francês, em que se afirmava que cabia a cada Estado signatário decidir se reconhecia ou não o casamento igualitário. A sentença se baseou em argumentos culturais e levou em consideração que na França havia outra possibilidade de união civil para casais homossexuais.

“Por unanimidade, a Corte Mundial de Direitos Humanos reconheceu, literalmente, que não há direito ao casamento entre pessoas do mesmo sexo”, diz uma das publicações compartilhadas no Twitter e no Facebook.

O conteúdo também foi encaminhado ao WhatsApp do AFP Checamos, para onde os usuários podem enviar publicações vistas em redes sociais, se duvidarem de sua veracidade.

Uma alegação similar foi compartilhada em espanhol.

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Captura de tela feita em 17 de julho de 2023 de uma publicação no Twitter ( .)

As publicações circulam junto a um artigo em francês, publicado em 2016, que menciona uma resolução judicial emitida naquele ano pelo caso “Chapin e Charpentier versus França”.

Em 2004, foi celebrada pela primeira vez na história da França uma união entre duas pessoas do mesmo sexo: os franceses Bertrand Charpentier e Stéphane Chapin se casaram na comunidade de Bègles, apesar de o matrimônio igualitário não estar legalizado naquele momento. Três anos depois, a justiça francesa anulou o casamento.

“Segundo a lei francesa, o matrimônio é a união de um homem e uma mulher”, afirmou a Suprema Corte francesa em sua decisão, que indeferiu a apelação apresentada pelo casal.

O caso gerou debates no cenário político e na sociedade, e chegou ao Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH), no qual indivíduos, organizações não governamentais e entidades estatais podem acionar um ou vários Estados que tenham ratificado a Convenção Europeia de Direitos do Homem caso considerem que seus direitos estão sendo violados. Para abrir um processo no TEDH é necessário que a parte demandante tenha esgotado todas as instâncias nos tribunais do respectivo país.

O casal francês considerou que o limite ao matrimônio entre pessoas do mesmo sexo na França se tratava de uma discriminação com base na combinação dos artigos 12 e 14 da Convenção Europeia de Direitos do Homem. Também alegaram terem sido vítimas de discriminação por sua orientação sexual em seu direito relativo à vida privada e familiar, invocando o artigo 8 combinado com o 14 da Convenção. O governo francês se opôs a ambas considerações.

Em 2016, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos deu razão ao governo francês e confirmou a anulação da união civil dos dois homens. Em sua sentença, o TEDH explicou que “embora no momento dos fatos, o matrimônio não estivesse aberto aos solicitantes em virtude da legislação francesa, poderia ter sido celebrado um Pacto Civil de Solidariedade” (Pacs), um tipo de união civil existente na França.

Em suas considerações sobre a segunda das alegações, o TEDH disse que é decisão de cada país aprovar ou não o matrimônio igualitário. Além disso, lembrou que a França legalizou em 2013 o casamento entre pessoas do mesmo sexo, motivo pelo qual os demandantes já seriam “livres para contrair matrimônio”.

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Bertrand Charpentier e Stéphane Chapin chegam ao Tribunal de Grande Instância de Bordeaux em 29 de setembro de 2006 ( AFP / Jean-Pierre Muller)

Interpretar essa decisão como a ausência do direito ao casamento entre pessoas do mesmo sexo na Europa é portanto um erro, explicaram três advogadas à AFP.

“O Tribunal Europeu nunca ditou uma sentença para anular o matrimônio entre pessoas do mesmo sexo. O Tribunal apenas interpreta e aplica a Convenção Europeia de Direitos do Homem”, disse à AFP, em 27 de outubro de 2022, Cécile Goubault-Larrecq, doutoranda em Direito Internacional Público.

No que foi baseada a decisão?

A Convenção Europeia de Direitos do Homem consagra o direito de contrair matrimônio e fundar uma família em seu artigo 12, ao afirmar que, “a partir da idade núbil, os homens e as mulheres têm direito a se casarem e fundarem família de acordo com as leis nacionais que regem o exercício desse direito”.

Em outras palavras, “não existe nenhuma obrigação no sentido da Convenção Europeia de Direitos Humanos de prever o matrimônio entre pessoas do mesmo sexo, porque está escrito entre 'homem e mulher'. Se estivesse escrito entre 'duas pessoas', o TEDH poderia ter mais liberdade. Foi feita uma escolha em 1950 e agora a questão é saber se os Estados mudaram de opinião desde então”, explicou à AFP, em 27 de outubro, Tania Racho, doutora em Direito Europeu.

A liberdade de cada país signatário da Convenção para decidir se deseja ou não a legalização do matrimônio para todos se reafirma em decretos ditados pelo TEDH em 2010, 2012, 2015 e 2016.

“A jurisprudência mostra que a Corte decide não intervir e considera, apesar do princípio de não discriminação e apesar do direito ao respeito à vida privada, que prefere deixar as modalidades do exercício do direito ao matrimônio aos Estados signatários”, disse Anne-Andréa Vilerio, advogada de Direito Público, à AFP em 27 de outubro.

"A Corte não obriga, mas tampouco proíbe aos Estados abrirem o matrimônio a casais homossexuais". Por outro lado, "requer que isso não signifique privá-los de qualquer possibilidade de se unirem por sua orientação sexual (através do Pacs, por exemplo), já que isso constituiria uma discriminação" proibida pela Conveção Europeia de Direitos do Homem, disse Cécile Goubault-Larrecq.

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Uma sala do TEDH, em Estrasburgo, na França, em 7 de fevereiro de 2019 ( AFP / Frederick FLORIN)

A jurista acrescentou que “o Tribunal somente verifica que a anulação de um matrimônio por parte das autoridades nacionais, francesas por exemplo, seja conforme o direito interno (francês) e que haja alternativa prevista no direito interno para sua união”. No caso de Chapin e Charpentier, a possibilidade de celebrar um Pacs no momento de sua união civil, em 2004, e a de se casar desde 2013.

Atualmente, se as autoridades francesas se negarem a celebrar ou anularem um casamento entre pessoas do mesmo sexo, atuariam fora da lei, já que a justiça francesa prevê o matrimônio para casais homossexuais.

Argumentos falsos

Em nenhuma instância do caso se afirma que “não existe o direito ao casamento homossexual” nem se fundamenta com considerações filosóficas ou antropológicas, como alegam alguns usuários.

“É completamente falso” dizer que “o TEDH se baseia em argumentos naturalistas para confirmar a anulação da união do casal de Bègles”, disse Anne-Andréa Vilerio.

“O TEDH explica, pelo contrário, que respeita a cultura do matrimônio em cada Estado e a evolução, ou, precisamente, a ausência de evolução na questão da abertura do matrimônio para pessoas do mesmo sexo”, acrescentou a especialista.

Além disso, o Tribunal especifica que seu enfoque poderia evoluir caso haja um consenso entre os países signatários da Convenção. “Precisamos ter uma jurisprudência construtiva com uma nova decisão nesse sentido, que considere as mudanças na sociedade”, explicou Tania Racho. “Mas em 2016 e antes, o TEDH considerava que não havia consenso europeu suficiente naquele momento para questionar este artigo e avançar a favor do casamento entre pessoas do mesmo sexo”.

Para as advogadas, entretanto, é difícil imaginar que o TEDH se pronuncie sobre a questão do casamento entre pessoas do mesmo sexo em um futuro próximo, já que as decisões do Tribunal não são executórias, mas incitativas. Isso significa que uma sentença do TEDH que contradiga a decisão de um Estado não a anula automaticamente.

“Por isso também, o TEDH deixa essa margem de manobra aos Estados no tema do matrimônio para todos, porque poderia se desacreditar, se pedisse a um Estado que respeitasse uma decisão sobre o tema e o Estado se negasse a aplicar", disse Anne-Andréa Vilerio.

Vários países que assinaram a Convenção continuam hostis à autorização de qualquer forma de união civil ou casamento entre pessoas do mesmo sexo, como Hungria ou Romênia.

Referências

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