Universidades dos EUA oferecem terapia a crianças com disforia de gênero, não cirurgia

Não é verdade que três universidades da Carolina do Norte, nos Estados Unidos, estão “oferecendo tratamento de transição de gênero” para crianças a partir de dois anos, como alegam publicações compartilhadas dezenas de vezes nas redes sociais desde 8 de maio de 2023. Os centros médicos universitários mencionados no texto oferecem serviços de saúde mental para crianças pequenas com disforia de gênero, mas suas políticas não permitem a cirurgia de transição ou reposição hormonal.

“Três escolas de medicina na Carolina do Norte estão agora diagnosticando crianças que brincam com brinquedos estereotipicamente opostos com disforia de gênero e já iniciaram a transição. Sim, você leu corretamente. Se uma menina de 2 anos pega um caminhão em vez de uma Barbie, isso é uma prova para esses médicos ativistas de que ela deveria ser um menino”, diz a legenda de uma publicação no Twitter.

Alegação semelhante também circula no Facebook, no Instagram e em sites, além de outros idiomas, como o espanhol.

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Captura de tela feita em 26 de maio de 2023 de uma publicação no Facebook ( .)

No artigo viral, intitulado “‘Crianças trans’ estariam sendo tratadas desde os 2 anos nos EUA”, é citado um relatório da Education First Alliance como fonte da informação.

“A University of North Carolina (UNC), a East Carolina University (ECU) e a Duke University foram identificadas como faculdades de medicina que oferecem terapias de transição para bebês”, diz o texto.

Publicações em espanhol são ilustradas com um gráfico que assinala que as “idades para transição de gênero” são de dois, três e quatro anos na Duke Health, University of North Carolina (UNC) Health e East Carolina University (ECU) Health, respectivamente.

As alegações da Education First Alliance ganharam projeção depois que alguns estados aprovaram leis que restringem certos tipos de procedimentos no atendimento para a transição de gênero a menores de idade (1, 2).

Na Carolina do Norte, legisladores republicanos apresentaram, no início de maio, um projeto de lei proibindo cirurgias e bloqueadores de puberdade para menores de 18 anos.

Mas, o conteúdo viral é impreciso: embora as clínicas universitárias citadas ofereçam aconselhamento a pacientes jovens com disforia de gênero, nenhuma delas está “transicionando” crianças de dois anos.

Origem da alegação

O artigo da Education First Alliance, usado como base, menciona várias fontes para fornecer um relato enganoso sobre o atendimento de afirmação de gênero na Carolina do Norte.

O atendimento para afirmação de gênero refere-se ao conjunto de procedimentos da área da saúde relacionados à disforia de gênero. Muitos desses tratamentos têm a ver com cuidados psicológicos e afirmação social; isto é, a aceitação de pronomes, roupas, corte de cabelo e o nome que a pessoa escolher. Também pode incluir bloqueadores da puberdade, terapia hormonal e cirurgias.

A disforia de gênero é um termo da área de saúde que se refere à angústia que uma pessoa pode sentir ao se identificar com um gênero distinto de seu sexo.

O texto faz referência a uma seção do site da UNC Health, excluída e arquivada, sobre a Iniciativa de Igualdade de Gênero e Bem-Estar em Psiquiatria da instituição.

“Nossa missão é fornecer cuidados coordenados baseados em evidências para indivíduos de gênero diversificado com idades entre quatro e 30 anos que estão explorando ou passando por tratamento de transição no estado da Carolina do Norte e na região sudeste local, e suas famílias”, lê-se na página.

A Academia Americana de Pediatria (AAP) recomenda em sua declaração de política pública que os jovens tenham acesso “a cuidados de saúde integrais que afirmem o gênero e sejam apropriados para o seu desenvolvimento”. A instituição afirma que “os protocolos atuais normalmente reservam intervenções cirúrgicas para adultos”, mas que raramente podem ser realizadas em adolescentes “levando em consideração a necessidade e o benefício para a saúde geral do adolescente e, muitas vezes, incluindo contribuições multidisciplinares de médicos, de saúde mental e cirúrgicos, bem como do adolescente e sua família”.

Todos os estados dos Estados Unidos exigem o consentimento de um responsável para a realização de tratamentos hormonais e cirúrgicos a pacientes menores de idade.

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Um menino transgênero junto com seus pais vê fotos de família de antes de sua transição em Massachusetts, em 9 de maio de 2017 ( AFP / Jewel Samad)

O atendimento é adequado à idade

As três redes de saúde mencionadas no artigo da Education First Alliance contestaram as alegações.

A ECU Health disse à AFP em um e-mail de 17 de maio de 2023 que “não oferece cirurgia de afirmação de gênero para menores, nem o sistema de saúde oferece cuidados de transição de gênero para crianças”.

A clínica também não fornece bloqueadores de hormônios puberais para crianças. “A terapia hormonal só é oferecida após a puberdade e em casos limitados, de acordo com as diretrizes nacionais que incluem extensas avaliações de saúde mental, e é feita em consulta com os pais ou responsáveis e com seu consentimento”, explicou.

Em 16 de maio, a UNC Health enviou à equipe de verificação da AFP uma declaração semelhante, alegando que o artigo da Education First Alliance “é absolutamente falso”. O centro médico acrescentou que está “cada vez mais preocupado com as ameaças aos [seus] provedores e pacientes”.

O terceiro provedor de saúde citado no artigo, Duke Health, declarou em uma sequência no Twitter, publicada em 4 de maio de 2023, que as alegações da Education First Alliance são “falsas”.

“As decisões sobre os cuidados são tomadas pelos pacientes, familiares e seus provedores. Elas são ajustadas à idade e às diretrizes nacionais e internacionais”, diz a postagem.

A mensagem acrescenta: “as terapias hormonais não são explicitamente fornecidas a crianças antes da puberdade e as cirurgias de afirmação de gênero são, exceto em circunstâncias extremamente raras, realizadas apenas após os 18 anos”.

Como outros centros médicos, a Duke Health ajuda crianças pequenas e suas famílias com serviços médicos, como avaliação psicossocial e triagem para depressão, distúrbios alimentares e outros comportamentos de alto risco.

De acordo com o sexólogo Eli Coleman, o aconselhamento para disforia de gênero envolve determinar o motivo pelo qual uma pessoa sente essa incongruência. Se apropriado, os profissionais de saúde ajudarão seus pacientes a desenvolver ferramentas e habilidades para lidar com a disforia.

“Algumas crianças com grave incongruência de gênero exibirão diversas expressões de gênero que não correspondem ao sexo atribuído ao nascer. Os pais podem se preocupar com esse comportamento desde muito jovens e procurar ajuda profissional”, disse à AFP Coleman, professor emérito da Universidade de Minnesota.

“Com uma avaliação cuidadosa, o envolvimento dos pais, ou responsáveis, e em cooperação com escolas e membros da família, pode-se tomar a decisão de permitir que a criança faça uma transição social de acordo com sua identidade de gênero. Isso pode envolver vestir-se de diversas maneiras de gênero, incluindo roupas ou penteados”, afirmou.

Referências

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