Checamos as afirmações sobre a lei de aborto aprovada na Nova Zelândia
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- Publicado em 19 de janeiro de 2021 às 20:54
- 6 minutos de leitura
- Por AFP Nova Zelândia, Taylor THOMPSON-FULLER
- Tradução e adaptação AFP Brasil
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“Fim dos tempos. Nova Zelândia passa a permitir aborto até o nascimento. Parlamento ignora referendo popular e aprova lei. Texto nem exige que seja um médico a realizar o ‘procedimento’”, indica o texto que acompanha as publicações compartilhadas no Facebook (1, 2, 3).
Apesar da decisão ter sido tomada no país em março de 2020, as postagens em português sobre o tema começaram a circular apenas em 2021, inclusive no Instagram (1, 2, 3), no Twitter (1) e em sites. Em outros idiomas, como o inglês, já eram registradas no final do ano passado.
Algumas publicações viralizadas em português mencionam que “qualquer mulher” poderia abortar o “bebê em qualquer fase da gravidez”. Em inglês essa prática é chamada nas postagens de “aborto sob demanda”.
À AFP, Jeanne Snelling, bioeticista e acadêmica em Direito da Universidade de Otago, assinalou que essa expressão “é baseada no pressuposto de que um clínico estaria preparado para realizar um aborto sem qualquer consideração das circunstâncias clínicas, incluindo a saúde física e mental da mulher, a fase gestacional da gravidez, a opinião de seus pares e os padrões éticos e profissionais”.
Legislação na Nova Zelândia
O Abortion Legislation Act aprovado em março de 2020 descriminalizou o aborto na Nova Zelândia. Essa foi uma emenda à norma anterior, de 1977, Contraception Sterilisation and Abortion Act, e estabeleceu a maioria das circunstâncias regulamentares em que os abortos podem ser autorizados e realizados.
Antes da introdução de uma legislação, o acesso aos abortos era regulado pelo New Zealand Crimes Act, de 1961, e estabelecia que não constituiria um crime uma mulher até 20 semanas de gestação realizasse um aborto se: o prosseguimento da gravidez pudesse constituir um perigo à vida, saúde física ou mental da mulher (não sendo o perigo decorrente do parto); houvesse um risco substancial de que a criança, se nascesse, pudesse ter questões físicas ou neurológicas graves; ou se a gravidez fosse o resultado de incesto ou relações sexuais com um membro da família.
Ainda de acordo com essa lei, os abortos após 20 semanas de gestação só eram permitidos se fosse “necessário para salvar a vida da mulher ou menina ou para evitar graves lesões permanentes à sua saúde física ou mental”.
Profissionais aptos a realizar o aborto
Com a nova lei, a realização de um aborto é considerada um serviço público, não mais um crime, e o procedimento deve ser feito por um profissional que esteja apto. Isso significa que um trabalhador de saúde pode realizar alguns tipos de aborto, mas não outros, como, por exemplo, prescrever medicamentos abortivos, mas não realizar intervenções cirúrgicas.
Algumas das principais mudanças indicam que uma gama maior de profissionais da saúde registrados - como médicos, parteiras, enfermeiros - façam abortos, desde que estejam dentro do escopo de sua prática e treinamento.
Na seção de perguntas e respostas do site do Ministério da Saúde neozelandês sobre o tema é especificado ser necessário um certificado de prática atualizado, além de qualificações essenciais, habilidades, competência e recursos, seguindo os padrões da pasta para esse tipo de procedimento.
O aborto após 20 semanas de gravidez
Após as 20 semanas de gestação, também segundo a nova lei, os abortos são permitidos, mas sob condições específicas, levando em consideração alguns fatores, incluindo a saúde física e mental da mulher.
Mas, para isso, o profissional de saúde qualificado deve certificar que o procedimento é clinicamente apropriado nas circunstâncias. Considerando que é viável nessas condições, ele deve, primeiramente, consultar pelo menos outro profissional da área qualificado e ambos devem concordar sobre a necessidade da intervenção.
Além disso, devem ser levados em conta os padrões legais, profissionais e éticos relevantes a que a saúde da mulher e seu bem-estar geral estão sujeitos e, por fim, a idade gestacional do feto.
Seleção sexual e eugenia?
Em uma das postagens a respeito da mudança na legislação neozelandesa sobre o tema é dito que ela “abre caminho para ‘seleção sexual’ e eugenia”.
Antes que o Abortion Legislation Act de 2020 entrasse em vigor, o Crimes Act, de 1961, só permitia explicitamente o aborto por motivos de deficiência antes de 20 semanas.
Contudo, a ginecologista e professora da Universidade de Otago Helen Paterson indicou à equipe de checagem da AFP que, antes da nova legislação, as mulheres tinham acesso a procedimentos abortivos após 20 semanas de gestação caso o feto pudesse ter uma deficiência grave.
“Anteriormente não havia um limite gestacional em torno da saúde mental materna e muitos abortos eram feitos por anormalidades congênitas (deficiências) após 20 semanas sob as circunstâncias de que causariam sérios problemas para a saúde mental da mãe”, assinalou Paterson.
E acrescentou: “A forma como estão colocando é que a restrição foi removida, [mas] a realidade é que ela nunca esteve realmente lá, em primeiro lugar”.
Em outubro de 2018 foi divulgado um relatório elaborado pela Comissão Legislativa da Nova Zelândia que mostrou que “praticamente todos os abortos realizados após 20 semanas estão relacionados a gravidezes desejadas e ocorrem porque uma grave anormalidade fetal é detectada ou porque existe um sério risco à vida ou saúde física da mulher”.
O texto ainda acrescenta que uma deficiência do feto “não é em si mesma um motivo para o aborto após 20 semanas, por isso é provável que o fundamento legal em que se baseia nesses casos seja o de evitar graves lesões permanentes à saúde mental da mulher”.
Sobre a seleção sexual, o relatório aponta que alguns profissionais de saúde demonstraram preocupação, mas que a comissão legislativa não encontrou evidências de abortos feitos com base no sexo do bebê na Nova Zelândia.
A lei neozelandesa, por sua vez, proíbe a escolha de embriões in vitro para com base no sexo. A Lei de Tecnologia Reprodutiva Assistida por Humanos de 2004, que regula procedimentos e pesquisas que auxiliam pessoas que não podem ter filhos, considera essas ações “inaceitáveis”.
Ainda na seção de perguntas e respostas do Ministério da Saúde é indicado que uma pesquisa feita em 2018 mostrou que a maior parte dos abortos - 89,3% - ocorreu durante o primeiro trimestre de gravidez (primeiras 12 semanas), enquanto uma pequena porcentagem - 0,4% - foi feita após as 20 semanas.
Inicialmente, estava prevista a realização de um referendo sobre essa mudança na lei de aborto, mas durante o processo de análise e votação isso foi deixado de lado, como reportou a mídia (1, 2, 3).