A França incluiu na lei um novo critério para a interrupção médica da gravidez, já possível em toda a gestação

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  • Publicado em 12 de agosto de 2020 às 22:38
  • 7 minutos de leitura
  • Por Juliette MANSOUR
  • Tradução e adaptação AFP Brasil
Publicações compartilhadas dezenas de milhares de vezes em redes sociais, inclusive por políticos brasileiros, afirmam que uma emenda à lei de bioética francesa, adotada na noite do último dia 31 de julho, permitiria a realização do aborto voluntário “até os nove meses de gestação” no país. Isso não é verdade. A emenda não diz respeito ao aborto voluntário (IVG), possível até as 12 semanas na França, mas inclui um critério de “sofrimento psicossocial” para a interrupção médica da gravidez (IMG). Esse procedimento já era possível durante toda a gestação, mas depende de condições rígidas.

 

“Na calada da noite, a Assembleia Nacional Francesa aprovou uma série de mudanças na lei de bioética do país, uma das quais legaliza o aborto voluntário até aos nove meses de gestação. Por 60 votos a 37, os representes do povo aprovaram na prática, o assassinato de bebês”, diz uma publicação compartilhada em 10 de agosto no Facebook.

Mensagens semelhantes se multiplicam no Facebook (1, 2, 3), Instagram (1, 2, 3) e Twitter (1, 2, 3), assim como em vários artigos (1, 2), somando mais de 45 mil compartilhamentos em menos de 24 horas. 

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Captura de tela feita em 11 de agosto de 2020 de publicação no Facebook
 

Alguns dos artigos virais indicam em seus textos que a possibilidade de abortar nas últimas fases da gravidez já era possível na França em caso de malformação fetal e de perigo para a saúde da mãe. Mas, em seus títulos, dão a entender que a emenda aprovada recentemente se refere ao aborto voluntário, sem necessidade de avaliação médica. Tampouco explicam a diferença existente na lei francesa entre o aborto voluntário e o aborto médico.

A alegação também foi difundida por figuras públicas brasileiras, como o filho do presidente Jair Bolsonaro e deputado federal pelo PSL, Eduardo Bolsonaro, e por seus colegas de partido Carla Zambelli e Filipe Barros. Também compartilhou mensagem semelhante o pastor e deputado federal pelo Podemos, Marco Feliciano.

Uma emenda referente às possibilidades de interrupção de gravidez na França efetivamente foi aprovada na noite de 31 de julho, mas ela não diz respeito ao aborto voluntário.

A diferença entre o IVG e o IMG na França

Ao contrário da interrupção voluntária da gravidez (IVG), possível na França até as 12 semanas (ou seja, até as 14 semanas de amenorréia), a interrupção médica da gravidez (IMG) pode ser realizada a qualquer momento da gestação.

A IMG é possível por razões médicas, quando há uma grande probabilidade de que o feto apresente uma condição particularmente grave e incurável, ou se a gravidez coloca em sério risco a saúde da mulher. Em todos os casos, a grávida deve efetuar um pedido para ter acesso ao procedimento.

A decisão é, então, tomada por uma equipe pluridisciplinar. Se dois médicos atestam, após exame e discussão, que há um risco fundamentado para a saúde da mulher ou de seu filho, eles emitem atestados permitindo a prática da IMG.

“É caso a caso”, explicou à AFP Israël Nisand, presidente do Colégio Nacional de Ginecologistas e Obstetras Franceses (CNGOF), contactado em 4 de agosto.

O ginecologista-obstetra detalhou, ainda, que “quanto mais avança a idade gestacional, mais difícil é para os médicos aceitarem a IMG”.

Em 2016, 7.366 atestados de gravidade para um IMG foram emitidos: 7.045 por motivo fetal e 321 por motivo materno, de acordo com dados da agência francesa de biomedicina

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Manifestantes de grupo feminista protestam a favor do aborto em Paris, em 20 de janeiro de 2019
 

No Brasil, onde o aborto voluntário é proibido, também há situações em que a interrupção da gravidez é permitida, como quando a gestação é resultado de um estupro, quando o feto é anencéfalo, e quando “não há outro meio de salvar a vida da gestante”.

Neste último caso, de maneira semelhante à IMG na França, não há idade gestacional máxima para realização do aborto.

O que diz a emenda aprovada pelos deputados?

Aprovada na noite de 31 de julho para 1º de agosto deste ano, a emenda diz respeito à interrupção médica da gravidez (IMG) e não à interrupção voluntária (IVG), ao contrário do que sugerem as publicações viralizadas.

Apresentada por deputados socialistas, a emenda inclui o “sofrimento psicossocial” como uma razão de “grave perigo” que pode justificar uma interrupção médica da gravidez (IMG).

Em um comunicado, o presidente do CNGOF, explicou, em outubro do ano passado, que a IMG praticada por motivos psicossociais “diz respeito às mulheres em situação de perigo pessoal, de violências, de grandes dificuldades psicológicas ou de extrema precariedade, tornando impossível a continuidade de suas gestações mesmo que elas tenham excedido o prazo legal de 14 semanas de amenorréia para a IVG”.

Erika Teissiere, psicóloga que trabalhou em equipes pluridisciplinares responsáveis por aprovar ou não pedidos de IMG, detalha: “As causas psicossociais podem ser graves transtornos psiquiátricos, casos de incesto ou de estupro que levaram a uma gravidez, casos de deficiência intelectual ou casos de precariedade social grave”.

O CNGOF se pronunciou, no comunicado, a favor de levar em conta o estresse psicossocial para a IMG, explicando que “essas situações correspondem a grande parte das viagens ao exterior para interrupção da gravidez, prejudiciais à saúde, onerosas, ou até inacessíveis para algumas mulheres”.

“A IMG de indicação materna [quando a decisão é tomada pela saúde da mãe] já leva em consideração as causas psicossociais desde 1975”, afirma também Israël Nisand.

Mas o termo “psicossocial” não constava na lei.

“A diferença com essa nova emenda, é que está escrito, preto no branco, na lei. Mas nós sempre levamos em conta as causas psicossociais naquilo que chamamos de ‘sofrimento materno’”, atesta Erika Teissiere.

Atualmente, o artigo L162-12 do código de saúde pública francês diz:

A emenda de 1º de agosto visa, então, acrescentar explicitamente a frase: “Este perigo pode resultar de um sofrimento psicossocial”.

Por quê? “Antes, era uma loteria: havia lugares onde levávamos em conta essa noção psicossocial e em outros, não. Nem todos os médicos concordavam”, afirmou Véronica Noseda, ex-coordenadora nacional do movimento Planning Familial.

“Isso criava uma injustiça e uma desigualdade de acesso em todo o território francês. Era importante que essa noção fosse integrada à lei”, acrescentou.

“Estávamos em uma área cinzenta. Como definir exatamente o que coloca em ‘grave perigo’ a saúde da mulher?”, disse à AFP Ghada Hatem-Gantzer ginecologista-obstetra e fundadora da Maison des femmes, em Saint-Denis, localizada ao norte de Paris.

“Alguns levavam mais ou menos em conta o sofrimento psicossocial”, continua Ghada Hatem-Gantzer, elogiando a adoção da emenda.

“Esta imprecisão na definição de ‘grave perigo’ levava a um tratamento muito desigual no território nacional”, afirmou à AFP a deputada socialista do departamento francês de Isère Marie-Noëlle Battistel, que defendeu a emenda.

“O que nós queremos, ao escrever de forma explícita, é que o sofrimento psicossocial seja levado em consideração para a IMG de maneira igual por todo o território. É um esclarecimento do quadro legislativo de acordo com o qual o colégio de médicos vai decidir ou não pela autorização da IMG”, continuou.

“Não devemos fantasiar de que as mulheres vão sair correndo para pedir a interrupção de suas gestações”, disse, por sua vez, Ghada Hatem-Gantzer. “Elas se deparam com violência, com precariedade extrema. Elas têm motivos reais, e já tinham antes”.

“Não devemos acreditar que a IMG é uma solução fácil”, acrescenta Erika Teissiere. “Em geral as mulheres fazem o pedido porque não sabiam antes que estavam grávidas, por exemplo nos casos de negação de gravidez, e ultrapassaram o prazo legal para a realização de uma IVG”.

Críticas à emenda

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Manifestantes carregam cartaz com os dizeres “Os direitos do homem começam desde sua origem” em uma manifestação anti-aborto em Paris, em 20 de janeiro de 2020
 

As críticas à emenda na França são emitidas principalmente pela associação do movimento pró-vida Alliance Vita.

“O sofrimento psicossocial é um critério inverificável e difícil de objetivar, e vai colocar pressões adicionais na mulher até o nascimento”, critica Caroline Roux, representante do movimento, contactada pela AFP em 4 de agosto.

O relator do texto, Jean-François Eliaou, deputado do departamento de Hérault pelo La République en Marche (LREM), também defendeu a retirada desta emenda em 31 de julho:

“O problema não é o direito, mas a prática. [...] Por que enumerar esse único motivo de IMG, e não os outros? O que acontecerá se o perigo resultar de uma causa puramente psicológica e não psicossocial? [...] Temo que estejamos enviando, ao inserir essa precisão na lei, um sinal complexo sobre a fronteira entre a IVG e a IMG”, disse o deputado.

Embora Israël Nisand reconheça que as causas de sofrimento psicossocial são “difíceis de definir”, ele afirma que elas o são “tanto quanto as causas de malformação fetal, que também são caso a caso”.

“Ao contrário da IVG, as mulheres podem sempre se deparar com uma recusa ao fazer um pedido de IMG no âmbito psicossocial. Não se pode acreditar que nós aceitamos todos os pedidos por esse motivo”, precisa Erika Teissiere.

Em resumo, não é verdade que a França legalizou o aborto voluntário até os nove meses de gestação. A emenda adotada na noite de 31 de julho para 1º de agosto deste ano acrescenta um critério de “sofrimento psicossocial” para a interrupção médica da gravidez (IMG), que já era possível no país durante toda a gestação.

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