Operação de desintrusão de terra indígena é erroneamente apontada como venda para China
- Publicado em 9 de dezembro de 2025 às 20:08
- 4 minutos de leitura
- Por AFP Brasil
É falso que o governo federal desapropriou famílias em Alvorada D’Oeste para vender terras à China, diferentemente do que dizem publicações com mais de 215 mil visualizações que circulam desde 28 de novembro de 2025. Na realidade, a sequência utilizada nas peças de desinformação está relacionada a uma operação para desintrusão da terra indígena Uru-Eu-Wau-Wau, realizada pelo Executivo e determinada pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Segundo especialista consultado pela AFP, a venda de terras indígenas para estrangeiros tampouco é permitida pela Constituição.
“O ibama expulsando família das suas terras pq o governo vendeu p, china”, diz a legenda sobreposta a um vídeo que circula no Instagram, no Facebook, no X, no TikTok, no Kwai e no Threads.
Na sequência viralizada que acompanha a alegação, um homem narra “casas queimadas” e “famílias expulsas de suas terras” em Alvorada D’Oeste, município de Rondônia.
O autor afirma que as famílias são assentadas pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) há anos e questiona: “Se estão fazendo isso com uma terra que tem escritura pública, então quem garante que a minha e a sua terra que tem escritura pública não aconteça a mesma coisa?”.
Através de uma busca reversa por fragmentos da gravação no Google Lens, foi possível identificar a publicação original, feita em 31 de outubro de 2025, pelo autor que se descreve como um “criador de conteúdo do interior de Rondônia”.
Outra busca, dessa vez no Google, com os termos “Alvorada D’Oeste” e “retirada de famílias” levou a uma reportagem de 30 de outubro de 2025 do Jornal de Rondônia, em que é informado que produtores rurais foram retirados por forças de seguranças de uma área rural do município Alvorada D’Oeste.
Segundo a reportagem, a área é demarcada como terra indígena e a ação fez parte de uma operação do governo federal para a desintrusão da terra da etnia Uru-Eu-Wau-Wau, que se deu em outros municípios de Rondônia.
A desintrusão, no caso, é o nome do processo concedido à retirada ocupantes não indígenas de territórios destinados aos povos originários.
A operação foi determinada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em cumprimento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 709 e da Petição 9585.
De acordo com o Instituto SocioAmbiental (ISA), o município de Alvorada D’Oeste possui 37% da terra indígena da etnia Uru-Eu-Wau-Wau.
Em nota enviada ao Checamos em 4 de dezembro de 2025, a Casa Civil reiterou que não é verdade que a operação no município se deu com o objetivo de venda por parte do governo, “seja para China ou qualquer outro tipo de comercialização”.
Como relembrou Eduardo Boesing, especialista em direito agrário e ambiental e sócio-fundador do escritório Kern Boesing, isso tampouco seria possível, uma vez que o artigo 231 da Constituição proíbe a venda, arrendamento ou transferência de terras indígenas a terceiros.
“Elas pertencem ao patrimônio da União e o usufruto é exclusivo das comunidades indígenas, não existindo qualquer hipótese legal de venda dessas áreas — para particulares ou para governos estrangeiros”, afirmou.
Quanto à venda de outras terras para estrangeiros, também há restrições regulamentadas pela lei 5.709/71 e outras normas, que incluem limite de áreas por município e nacionalidade. No caso de grandes propriedades ou áreas estratégicas como fronteiras, é necessária a aprovação do Congresso.
“A legislação brasileira busca um equilíbrio, permitindo a aquisição de terras por estrangeiros, mas sob um controle rígido para garantir a segurança nacional e o uso produtivo da terra, sem permitir o controle excessivo por interesses estrangeiros, especialmente em regiões sensíveis”, explicou o advogado.
Desintrusão com escrituras públicas?
A operação de desintrusão em Alvorada D’Oeste foi criticada por entidades e produtores, que alegaram possuir escritura pública das terras concedidas pelo Incra (1, 2).
A ação no território levou a Comissão de Direitos Humanos (CDH) do Senado a instalar uma diligência para investigar a operação e o Tribunal de Justiça da região a suspender as notificações de desintrusão na região do Parque Nacional dos Pacaás Novos.
O governo federal, porém, negou que tenha recebido os títulos de propriedade dos moradores da região.
Ainda em nota ao Checamos, a Casa Civil afirmou que foram realizadas diligências em Alvorada d’Oeste e que as notificações aos ocupantes irregulares ocorreram desde setembro. “Nenhum título de terra referente a essa região – no total, com cinco lotes – foi apresentado à coordenação da operação”, afirmou o órgão.
O AFP Checamos não pôde confirmar de maneira independente a existência de escritura pública nos casos em Alvorada d’Oeste descritos no vídeo viral.
Mas, segundo Eduardo Boesing, existem casos na Amazônia em que o Estado concedeu títulos e assentou famílias em áreas que depois foram reconhecidas como terras indígenas.
“Nesses casos, a Constituição é clara: a terra é indígena, e a permanência de terceiros é ilegal — mesmo que esses terceiros tenham recebido o título do próprio Estado”, disse Boesing, acrescentando que medidas compensatórias, como indenizações, são usadas em situações como essa.
Boesing ainda explicou que a escritura pública não é “garantia absoluta” em casos de “nulo de origem”: “Se o título foi concedido pelo Estado em área que constitucionalmente pertence às comunidades indígenas, esse título é considerado nulo de pleno direito porque o Estado não pode transferir o que juridicamente não lhe pertence”.
Por fim, o advogado afirmou que há também uma diferença conceitual entre desapropriação e desintrusão:
“Na desapropriação, o Estado compra a terra privada para um fim público. Na desintrusão, o Estado apenas corrige uma posse irregular em território que já é da União e pertencente aos povos indígenas por determinação constitucional”.
Portanto, a desintrusão, como explica o especialista, não pode afetar toda e qualquer propriedade, como as peças de desinformação dão a entender.
Referências
- Reportagem do Jornal Rondônia sobre operação em Alvorada D’Oeste
- Notícia do governo federal sobre a operação
- Página do ISA sobre a terra Uru-Eu-Wau-Wau
- Notícia sobre a ADPF 709
- Especialista Eduardo Boesing
- Constituição de 1988
- Lei 5.709 de 1971
- Notícias sobre a desintrusão em Alvorada D’Oeste (1, 2)
- Decreto de 1991 de demarcação da Terra Uru-Eu-Wau-Wau
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