
Associação defendida por Trump entre paracetamol e autismo não tem embasamento científico
- Publicado em 2 de outubro de 2025 às 21:59
- 5 minutos de leitura
- Por AFP França, AFP Estados Unidos
- Tradução e adaptação AFP Brasil
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“Não tomem” e “não deem ao seu bebê”, desaconselhou o presidente norte-americano, referindo-se ao medicamento paracetamol - em uma coletiva de imprensa dedicada ao autismo realizada na Casa Branca, em 22 de setembro de 2025, que ecoou amplamente nas redes sociais.
Robert Kennedy Jr, secretário de saúde de sua gestão que há anos propaga informações falsas veiculando autismo às vacinas, havia prometido estabelecer as causas do que chama de uma “epidemia de autismo” até setembro, levando à preocupação de especialistas.
No dia seguinte às declarações de Trump, a OMS e outras autoridades de saúde de diferentes países refutaram a alegação e reafirmaram que não existe nenhuma evidência científica que comprove que o uso de paracetamol por mulheres grávidas provoque autismo em seus filhos.
Nenhuma evidência sólida
Presente em medicamentos como Tylenol, o paracetamol, ou acetaminofeno, é recomendado para mulheres grávidas para dor ou febre, uma vez que outros fármacos como aspirina e ibuprofeno são contraindicados, especialmente no final da gravidez.
Embora os casos de autismo — transtorno complexo e de amplo espectro que afeta o neurodesenvolvimento — tenham aumentado nas últimas décadas nos Estados Unidos, cientistas rejeitam a tese de uma epidemia e apontam para melhorias nos diagnósticos.
Pesquisadores demonstraram que a genética desempenha um papel significativo na origem do transtorno. Fatores ambientais também foram destacados, como a neuroinflamação ou o uso de determinados medicamentos, como o antiepiléptico Depakine, durante a gravidez.
“Não há registros no país de notificações de suspeitas de eventos adversos que relacionem o uso de paracetamol durante a gravidez a casos de autismo”, destacou uma nota da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), publicada dias após as declarações de Trump.
Já a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou que estudos extensos foram produzidos na última década para investigar o vínculo entre o uso de paracetamol durante a gravidez e o autismo, mas que, “atualmente, nenhuma ligação consistente foi estabelecida”.
Uma declaração com o mesmo teor foi divulgada pela Agência Europeia de Medicamentos (EMA, na sigla em inglês) e por autoridades de saúde do Reino Unido e do Canadá.
Estudo sueco de referência
Monique Botha, psicóloga da Universidade de Durham, no Reino Unido, que estuda o autismo, afirmou que a comunidade médica e científica ficou“chocada e horrorizada” com a declaração de Trump.
Segundo Botha, até o momento, os dados mais robustos acerca do tema vêm de um estudo publicado em 2024 na revista médica Journal of the American Medical Association (Jama), que envolveu quase 2,5 milhões de crianças nascidas na Suécia e acompanhadas por mais de duas décadas. A pesquisa é considerada como a análise de mais alta qualidade disponível.
“Este é um estudo de caso-controle sobre irmãos, o que significa que temos dados de várias gestações da mesma mãe, em uma das quais tomou paracetamol e na outra não”, descreveu Botha.
Diferentemente do que alega o presidente norte-americano, o estudo concluiu que “o uso de paracetamol durante a gravidez não foi associado ao risco de autismo, TDAH ou deficiência intelectual em crianças".
O debate sobre o uso de paracetamol durante a gravidez não é novo. Em 2021, um grupo de especialistas revisou dados de diversos estudos sobre os efeitos adversos do medicamento e concluiu que as gestantes devem ser informadas de que o paracetamol deve ser evitado, ao menos que haja indicação médica.
No entanto, o medicamento continua sendo, de longe, o analgésico mais seguro para mulheres grávidas, quando comparado com a aspirina ou o ibuprofeno.
Rod Mitchell, professor de endocrinologia pediátrica na Universidade de Edimburgo, na Escócia, e um dos autores da análise de 2021, demonstrou “sérias preocupações” com os comentários de Trump. O endocrinologista apontou que há provas de que “o paracetamol pode afetar o desenvolvimento do feto, principalmente em termos de reprodução e fertilidades futuras”, acrescentando que os efeitos ou riscos potenciais não foram claramente estabelecidos.
Mas, “como um todo, as evidências disponíveis não sugerem que o paracetamol cause autismo", destacou Mitchell.

Estudo citado por gestão Trump é contestado
Para defender a associação entre o medicamento e o autismo, membros da gestão Trump citam com frequência um artigo de 2025 que compila os resultados de 40 estudos e conclui que há relação entre o uso de paracetamol durante a gravidez e o desenvolvimento de transtornos neurológicos.
No entanto, como ressalta Botha, tal artigo incluiu a análise de estudos antigos que apresentam falhas de metodologia, como, por exemplo, desconsiderar se os pais da criança eram autistas. Esse é um fator importante, uma vez que a genética pode influenciar o surgimento do autismo.
Em contrapartida, o estudo publicado em 2024 pelo Jama leva em consideração vários fatores que poderiam enviesar a análise e compara o risco de autismo em crianças de mesmas famílias.
Em um comunicado em resposta às declarações da Casa Branca, a Coalizão de Cientistas do Autismo destacou que o estudo utilizado como prova também desconsiderou que a febre durante a gravidez — geralmente tratada com paracetamol — pode aumentar o risco de autismo.
“Pesquisas que alegam encontrar uma ligação não separam correlação de causalidade”, disse Steven Kapp, professor sênior de psicologia na Universidade de Portsmouth, no Reino Unido, e membro da coalizão, ao Science Media Center.
Após a coletiva de imprensa de Trump, o conselho médico da agência de Alimentos e Medicamentos dos Estados Unidos (FDA, na sigla em inglês) publicou uma nota recomendando que médicos tenham cautela ao prescrever paracetamol a pacientes grávidas, mas deixou claro que, "embora uma associação entre paracetamol e autismo tenha sido descrita em muitos estudos, uma relação causal não foi estabelecida e há estudos contrários na literatura científica".
Assim como a maioria dos medicamentos, há risco de overdose quando o paracetamol é tomado em grandes quantidades e a recomendação é procurar atendimento médico que indicará quando e a quantidade para o uso durante a gravidez.
O Checamos já verificou outra desinformação sobre o paracetamol e outros conteúdos de saúde.
Referências
- Artigo sobre a influência de fator genético no autismo
- Declarações de autoridades de saúde (1, 2, 3, 4, 5)
- Estudo sueco de 2024, de referência, sobre o tema
- Estudo de 2021 sobre o paracetamol na gravidez
- Estudo contestado de 2025 usado como prova pela gestão Trump
- Comunicado da Coalizão de Cientistas do Autismo
- Declaração de Steven Kapp
- Nota da FDA sobre a prescrição do paracetamol
- Informações adicionais sobre risco de overdose e prescrição médica (1, 2)