Ex-comissário da UE, Breton não falou em anular eleições na Alemanha; vídeo foi tirado de contexto

O apoio de Elon Musk ao partido Alternativa para a Alemanha (AfD) levantou questões sobre a interferência estrangeira e o papel das plataformas digitais em processos eleitorais. Nesse contexto, usuários compartilharam milhares de vezes uma entrevista do ex-comissário da União Europeia (UE) Thierry Breton. Segundo as publicações, ele teria afirmado que o bloco anularia as eleições na Alemanha, “como fez na Romênia”. Mas a citação foi tirada de contexto: Breton falava sobre a lei da UE contra a manipulação nas redes sociais. Além disso, o bloco não pode anular eleições.

“O ex-comissário da União Europeia, Thierry Breton, o mesmo que ameaçou Elon Musk por entrevistar Trump no X — sugere que as próximas eleições na Alemanha serão anuladas se a AfD vencer: ‘Fizemos isso na Romênia e teremos que fazer, óbviamente, se for necessário, na Alemanha’”, diz a legenda de uma das publicações no Facebook, no Instagram e no Threads

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Captura de tela feita em 13 de fevereiro de 2025 de uma publicação no Facebook (.)

O conteúdo também circula em outros idiomas, como alemão, romeno, holandês, sérvio, croata, eslovaco, tcheco, italiano, grego, francês e catalão.

O trecho viralizado foi retirado de uma entrevista que Breton concedeu em 9 de janeiro de 2025 à Rádio Monte Carlo (RMC), falando sobre o risco que representaria para a Europa se o bilionário Elon Musk, proprietário do X, agisse para influenciar campanhas eleitorais e questões políticas dos Estados da União Europeia. 

O tema foi abordado uma vez que, dias antes, em 20 de dezembro de 2024, Musk havia declarado publicamente apoio ao partido alemão de extrema direita Alternativa para a Alemanha (AfD) —  cujo comício ainda veio a participar no final de janeiro. 

Na entrevista, o ex-comissário fez referência à Romênia, falando sobre a decisão do Tribunal Constitucional do país de, em dezembro de 2024, anular as eleições presidenciais realizadas em novembro de 2024 por suspeitas de interferência russa na campanha eleitoral.

As autoridades romenas acusam o vencedor do primeiro-turno, Calin Georgescu, do partido Aliança para a Unidade dos Romenos (AUR), de receber apoio ilícito por meio da plataforma TikTok.

Mas não é verdade que Breton tenha afirmado, na entrevista viralizada, que a União Europeia poderia anular eleições na Alemanha, nem que o bloco tenha tomado essa medida na Romênia. 

As declarações de Breton foram tiradas do contexto

O ex-comissário explicava no programa de rádio os mecanismos legais da União Europeia, por meio da Lei de Serviços Digitais (DSA, na sigla em inglês), para combater a manipulação das redes sociais nas campanhas eleitorais dos Estados-membros.

A apresentadora do programa, Apolline de Malherbe, perguntou a Breton sobre os riscos que existem na intrusão de Elon Musk, proprietário do X e da Starlink e membro proeminente do governo Trump, na política europeia. 

De acordo com o ex-comissário, o bloco está preparado para resistir à interferência estrangeira com a Lei de Serviços Digitais. “Tenho certeza de que todas as medidas serão tomadas para garantir que [Musk] respeite a lei”, disse Breton, em tradução livre do francês.

As mensagens virais alegam que o ex-comissário afirmou que a União Europeia anularia as eleições na Alemanha se o Alternativa para a Alemanha (AfD) vencer, mas Breton não falou em “anular” as eleições, nem de ter feito isso na Romênia. Ele se referiu, na verdade, a alegações de irregularidades eleitorais na Romênia e à entrada de Musk na campanha alemã.

“Vamos esperar e ver o que vai acontecer, vamos manter a cabeça fria. E vamos fazer valer nossas leis na Europa quando houver o risco de que elas sejam violadas. Se não as aplicarmos, isso pode levar, evidentemente, a interferências. Fizemos isso na Romênia e, se necessário, teremos que fazer isso na Alemanha”, é a frase completa de Breton.

Breton respondeu a Musk: UE não pode anular eleições

Após a entrevista de Breton, Musk compartilhou a sequência viral em uma publicação no X, chamando o ex-comissário de “tirano da Europa”.

O ex-comissário respondeu a Musk afirmando que a UE não pode anular eleições dos Estados-membros. “A UE não tem mecanismos para anular nenhuma eleição em nenhum lugar da UE”, escreveu Breton em 11 de janeiro. “O que é dito no vídeo está relacionado à implementação da DSA e suas obrigações de moderação”, acrescentou.

Em 24 de janeiro de 2025, Breton disse à AFP que a mensagem viral é uma “notícia falsa”: “A UE não tem absolutamente nenhum mecanismo desse tipo”.

Breton e Musk já haviam trocado mensagens nas redes em agosto de 2024 sobre a Lei de Serviços Digitais.

Uma pesquisa pelas palavras “eleições”, “anulação”, “anular” e “invalidar” no Tratado da União Europeia e no Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia não levou a nenhum resultado que respaldasse a alegação das postagens virais.

O professor de direito europeu da Universidade Humboldt de Berlim, Matthias Ruffert, enfatizou à AFP em 27 de janeiro de 2025 que a UE não tem o poder de anular as eleições dos Estados-membros.

Uma porta-voz da Comissão Europeia também confirmou à AFP, em 24 de janeiro de 2025, que a UE não pode invalidar os resultados das eleições.

O Tribunal Constitucional da Romênia anulou as eleições, não a UE

Foi, na verdade, o Tribunal Constitucional da Romênia que invalidou a votação no país em 6 de dezembro de 2024 devido a irregularidades no processo eleitoral, como uma campanha ilegal de propaganda política através do TikTok.

Por sua vez, em meados de dezembro de 2024, a Comissão Europeia abriu um processo contra o TikTok por supostamente violar a Lei de Serviços Digitais  na Romênia.

A Constituição da Romênia garante eleições livres, regulamentadas e justas. O professor Matthias Kettemann, diretor do Departamento de Teoria Jurídica e Futuro da Lei da Universidade de Innusbruck, na Áustria, disse à AFP que a Constituição deve “impedir qualquer interferência injustificada no processo eleitoral”.

De acordo com Kettemann, “devido à campanha de desinformação identificada pelo Tribunal Constitucional da Romênia, ou seja, o uso de contas falsas para coordenar uma campanha e anúncios políticos no TikTok que não foram claramente rotulados, é provável que a DSA tenha sido violada”.

O Tribunal Europeu de Direitos Humanos rejeitou em janeiro de 2025 um pedido de Georgescu contra a anulação das eleições.

O primeiro turno das eleições presidenciais será repetido em 4 de maio de 2025 e o segundo turno no dia 18 do mesmo mês. O presidente romeno Klaus Iohannis renunciou, em 10 de fevereiro, após enfrentar protestos por permanecer no cargo após a anulação do pleito. 

O Parlamento alemão pode anular as eleições

Por sua vez, o governo alemão negou as alegações das mensagens virais em uma publicação no Instagram em 21 de janeiro de 2025.

É o Parlamento alemão que pode invalidar as eleições federais em caso de violação da lei ou de irregularidades no processo eleitoral.

Uma porta-voz da Comissão Eleitoral Federal da Alemanha disse à AFP em 19 de janeiro de 2025: “De acordo com a lei (Artigo 41), o Parlamento alemão determina a validez das eleições”. Ela afirmou que há também “a possibilidade de apresentar uma queixa sobre as eleições ao Tribunal Federal Constitucional”.

O artigo 38 da Constituição alemã garante que os membros do Parlamento sejam eleitos em “eleições gerais, diretas, livres, iguais e secretas”.

Kettemann explicou: “No entanto, só são consideradas irregularidades e violações da lei [os atos] que podem alterar os resultados das eleições ou colocar em dúvida a integridade do processo eleitoral”.

Referências 

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