O “Pacto para o Futuro” aprovado pela ONU não limita a soberania dos países

Em setembro de 2024, a Assembleia Geral das Nações Unidas adotou o Pacto para o Futuro, um plano de ação global que contempla temas como a mudança climática, a inteligência artificial e a manutenção da paz. Neste contexto, usuários compartilharam centenas de vezes nas redes sociais um vídeo de uma mulher dizendo que o texto permite à organização impor novas leis aos Estados-membros, como um sistema global de identificação digital ou sanções para quem difundir desinformação. Porém, o texto da ONU não prevê tais normas, e especialistas explicaram que a entidade não pode anular leis nacionais.

“Dra. Sherry Tenpenny: A ONU acaba de votar para tornar todos nós escravos cidadãos digitais globais”, diz uma das publicações que compartilham a sequência viral no Facebook e no X.

Publicações semelhantes, algumas delas que denominam o acordo de “Pacto do Futuro 2045”, circulam em inglês, sérvio, espanhol, húngaro, japonês e grego.

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Captura de tela feita em 7 de outubro de 2024 de uma publicação no Facebook (.)

Na gravação, uma mulher afirma que com o pacto aprovado pela ONU “todos os países terão uma identificação digital biométrica” para marcar as pessoas “como cidadãos globais”, e “qualquer opinião dissonante será classificada como desinformação” e “castigada” com distintos métodos, como o “bloqueio de conta bancária” ou a “impossibilidade de realizar determinadas compras, andar de avião, metrô ou circular por vias públicas”.

O vídeo original foi publicado no X em 23 de setembro de 2024 por Sherri Tenpenny, uma osteopata de Ohio, nos Estados Unidos, e conhecida ativista antivacina, que já teve conteúdos de desinformação desmentidos pelo serviço de verificação digital da AFP em inglês.

Em 2021, o secretário-geral da ONU, António Guterres, lançou a ideia da chamada Cúpula do Futuro, que buscou firmar um pacto entre os países para combater os “maiores desafios de nosso tempo”, que contemplam questões como a paz e o direito internacional, a crise climática e a inteligência artificial.

O acordo foi adotado oficialmente em 22 de setembro de 2024. O documento, que inclui um conjunto de recomendações não vinculantes, foi aprovado em consenso, ainda que alguns países como Rússia, Venezuela, Argentina, Nicarágua, Coreia do Norte e Bielorússia tenham se manifestado contra.

O presidente da Argentina, Javier Milei, por exemplo, afirmou que o pacto propõe soluções que “atentam contra a soberania dos Estados-nação e violam o direito à vida, à liberdade e à propriedade das pessoas”.

O pacto respeita a soberania dos estados-membros

A resolução final da Assembleia Geral das Nações Unidas, em que foi adotado o Pacto para o Futuro, não menciona que a ONU vai impor novas leis aos estados-membros. Na verdade, no item 12, o acordo incentiva os estados a respeitarem “a soberania e a integridade territorial de cada um, defendendo os princípios de independência política e autodeterminação”.

O pacto, assim como os dois anexos aprovados com ele (o Pacto Digital Global e a Declaração sobre as Gerações Futuras), tampouco incluem alguma medida de “controle das massas” ou a aprovação de uma identificação biométrica ou digital mundial. A única menção à palavra “identificação”, dentro do Pacto Digital Global, busca identificar conteúdos gerados com inteligência artificial.

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O secretário geral das Nações Unidas, António Guterres, discursa durante a Cúpula do Futuro, na Assembleia Geral da ONU em Nova York, em 22 de setembro de 2024 (AFP / ANGELA WEISS)

O Pacto para o Futuro também recomenda aos Estados limitar a difusão da desinformação, especialmente nos casos de incitação à violência. No entanto, o plano não menciona nenhum tipo de punição aos que difundem desinformação, e o propõe aos Estados que respeitem “o direito à liberdade de expressão e à privacidade”.

O anexo sobre tecnologias digitais incentiva os países a promover a cooperação internacional para “abordar o desafio da desinformação” de uma forma “compatível com o direito internacional”.

Sobre o pacto, a protagonista do vídeo viral afirmou ainda que o documento foi aprovado mediante um “procedimento do silêncio”. Trata-se de um método de adoção formal de um texto no contexto político internacional, que no caso das Nações Unidas foi formalizado durante a pandemia da covid-19. Este sistema implica que, quando os países são comunicados sobre uma versão provisória de um texto em discussão, eles têm um prazo para propor modificações no texto. Caso nenhum país se oponha até o fim do prazo estabelecido, o texto é considerado aprovado.

O Pacto para o Futuro e as vacinas

O vídeo viral também associa o pacto com o Tratado das Pandemias, uma proposta da Organização Mundial da Saúde (OMS) para prevenir e preparar o mundo para novas pandemias.

O Pacto para o Futuro refere-se às vacinas em duas ocasiões, recomendando“acelerar os esforços para alcançar uma cobertura sanitária universal”, incluindo “imunizações e vacinações”, entre outros aspectos. Em nenhuma parte permite que a ONU ou a OMS declarem uma emergência e que obriguem a vacinação.

O documento não tem caráter de lei

Paul Stares e Natalie Caloca, diretor e coordenadora do Centro de Ação Preventiva, programa do think tank norte-americano Conselho de Relações Exteriores, explicaram à AFP que os pactos da Assembleia Geral da ONU não têm caráter de lei e que o órgão não pode impor sanções por difundir desinformação ou por negar a vacinação.

Ambos concordaram que as recomendações “são esforços para moldar normas globais e incentivar a ação internacional", porém que “não serão juridicamente vinculantes nem exigidas nos Estados Unidos ou em qualquer outro país”.

Stares e Caloca afirmaram que é “pouco provável, senão impossível”, que o Conselho de Segurança das Nações Unidas - esse sim, com poder para emitir resoluções vinculantes - considere adotar o Pacto para o Futuro. Como motivos, ambos apontaram as objeções da Rússia nos últimos instantes, que buscava introduzir uma emenda que enfatizava o “princípio de não interferência nos assuntos internos dos Estados”, e a formulação vaga de suas 56 ações.

“Em outras palavras, as propostas do pacto estão em grande medida mal definidas para serem aplicadas, mesmo se o documento fosse adaptado a uma resolução do Conselho de Segurança das Nações Unidas e aprovado”, indicaram os especialistas.

Por sua vez, Karen Mathiasen, diretora de programas do think tank Centro para o Desenvolvimento Global, disse à AFP que a resolução final do pacto é “ineficaz”.

“Não há aplicação de lei, não há responsabilização, não há nenhum mecanismo de prestação de contas, não há um monitoramento real, não há um plano de implementação”, opinou a especialista.

O AFP Checamos já desmentiu anteriormente outros conteúdos com desinformação sobre as resoluções das Nações Unidas.

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