Comparação entre "11 contêineres de presentes" de Lula com caso de Bolsonaro é enganosa
- Publicado em 10 de julho de 2024 às 17:41
- 6 minutos de leitura
- Por AFP Brasil
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“Indiciar algo que não tem prova é fácil, quero ver ir atrás dos onze containers!”, diz uma das mensagens que circulam no X. O conteúdo foi compartilhado também no Facebook, no Instagram, no TikTok e no Kwai, e foi difundido inclusive por parlamentares.
A legenda da publicação faz referência ao indiciamento do ex-presidente Bolsonaro, em 4 de julho, no caso das joias sauditas. A suspeita é de que o ex-mandatário teria agido para se apropriar dos itens recebidos enquanto ainda era presidente da República, e que deveriam ter sido incorporados ao acervo público da Presidência.
Entrevista de março de 2016
No vídeo que circula nas redes, Lula é visto segurando um microfone e dizendo: “Você sabe o que é que é alguém sair da Presidência com 11 contêineres de acervo sem ter onde pôr? Você sabe o que é sair com cadeira, com trono, com papel, com tudo o que você possa imaginar? Porque se somar todos os presidentes da história desse país, desde Floriano Peixoto, eu fui o que mais ganhei presente. Porque viajei mais, porque trabalhei mais, porque viajei o mundo, eu tenho até trono da África. O que é que eu faço com isso?”.
Buscas reversas por fragmentos do vídeo localizaram a entrevista original de Lula, concedida em 4 de março de 2016 após a 24ª fase da Operação Lava Jato.
A data, no caso, é relevante porque somente em agosto de 2016 — meses depois da entrevista de Lula — o Tribunal de Contas da União determinou a incorporação de todos os documentos e presentes recebidos pelos presidentes da República ao patrimônio da União. As exceções restringiam-se a itens “de natureza personalíssima ou de consumo próprio”. A decisão pode ser vista no Acórdão 2.255/2016.
Até essa decisão, presentes recebidos por presidentes da República eram regidos, sobretudo, pelo Decreto nº 4.344/2002 — que, por sua vez, era uma regulamentação da legislação original sobre o tema, a Lei 8.394/1991.
Entretanto, o inciso II do decreto nº 4.344/2022 permitia a interpretação de que somente “documentos bibliográficos e museológicos recebidos em cerimônias de troca de presentes, nas audiências com chefes de Estado e de Governo por ocasião das ‘Visitas Oficiais’ ou ‘Viagens de Estado’ do presidente da República ao exterior” seriam patrimônio da União. Ou seja, bens recebidos fora de cerimônias de “trocas de presentes” poderiam ser considerados parte do acervo pessoal do chefe de Estado, de acordo com o entendimento vigente até então.
Foi esse ponto que o acórdão do TCU, em 2016, considerou uma “interpretação equivocada”.
Nesse mesmo acórdão, o TCU determinava que, no prazo de 120 dias, fosse identificada a localização de 568 presentes recebidos por Lula de chefes de Estado ou Governo, em audiências no exterior ou em solo nacional.
11 contêineres e auditoria do TCU
Uma pesquisa no Google pelas palavras-chave “Lula 11 contêineres” trouxe como resultado uma matéria do veículo Poder360, que afirma: “O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) recebeu 9.037 itens nos seus primeiros 2 mandatos (2003-2010). Tudo foi retirado em 11 contêineres”.
O Instituto Lula, cuja equipe organiza e mantém o acervo presidencial do mandatário, afirma em seu site que o acervo do petista é composto por 9.039 objetos “como esculturas, medalhas, camisetas, bonés, quadros, honrarias, entre outros”.
Além desses bens, compõem o acervo, segundo o instituto, mais de nove mil livros, mais de 400 mil correspondências, e mais de 12 mil itens audiovisuais, como fotos e álbuns.
O AFP Checamos entrou em contato com a assessoria de imprensa do Instituto Lula em agosto de 2023, que afirmou que o TCU teve acesso à lista completa de presentes recebidos por Lula e, destes, selecionou os 568 presentes mencionados inicialmente no acórdão. À época, o TCU confirmou essa informação à AFP.
Após a determinação do TCU, a Secretaria de Administração da Presidência da República informou ao Tribunal em 2019 que havia instituído uma comissão especial para atender à decisão, e que, após uma análise da Diretoria de Documentação Histórica (DDH) do Gabinete Pessoal do Presidente da República, concluiu-se que o número final de bens de Lula a serem incorporados no acervo público da União era de 434, não de 568.
Nessa mesma resposta, a Secretaria indicou, desse total de 434 itens, a localização de 360 bens. Restava, portanto, localizar 74 itens.
“Posteriormente, o Ofício 2512/2019/SA/SG/SG/PR informa que, quanto ao presidente Lula, restaram apenas 8 bens a serem localizados, cujo valor alcança R$ 11.748,40”, disse ao AFP Checamos a assessoria de imprensa do TCU em agosto de 2023.
Ainda segundo o Tribunal, esse valor total dos oito bens não localizados dispensa a instauração da chamada Tomada de Contas Especial (TCE), uma medida de exceção que tem como objetivo apurar se o investigado é responsável por dano à administração pública.
Dado que a TCE foi considerada desnecessária, em 2020 o TCU julgou cumprida a determinação que inicialmente havia sido feita em 2016, de localização dos 568 presentes de Lula.
Ainda segundo a resposta enviada pela equipe do TCU à AFP, em agosto de 2023, Lula teria pago o valor dos itens não localizados em dez parcelas de R$ 1.174,84 — totalizando o valor de R$ 11.748,40 dos itens — de acordo com o informado no Ofício 358/2021/SA/SG/SG/PR. O AFP Checamos não teve acesso ao documento citado pelo tribunal.
O TCU também resumiu quais seriam os oito itens finais não localizados:
- Cuia e bomba para tomar chimarrão trabalhadas em prata e bronze;
- Peça com grupo de músicos (adultos e crianças) ao redor de uma mesa de madeira;
- Quadro (14,4x19,3 cm) tipo porta-retratos, emoldurando selo em ouro, com rosto de homem;
- Duas esculturas em madeira, em forma de pássaro (39x18 cm e 41x16 cm);
- Cartaz (84,5x56 cm) com fotografia impressa do Santo Sudário;
- Garrafa (21 cm) para licor, em cristal, com tampa e gargalo em prata;
- Espada (112 cm) com punho e bainha confeccionados em madeira escura, e ornada com peças metálicas;
- Escultura (14x13x4 cm) confeccionada em bronze, fixada em base retangular representando mulher segurando buquê de flores vermelhas, apoiada em uma bicicleta.
Relógio de luxo recebido por Lula
Segundo matérias registradas na imprensa, porém, Lula teria deixado de declarar um relógio da marca Piaget, que foi dado ao mandatário brasileiro em 2005 pelo então presidente da França Jacques Chirac (1, 2, 3). O valor do item é estimado em cerca de R$ 80 mil.
No entanto, de acordo com uma matéria publicada pelo jornal O Estado de S.Paulo em maio de 2024, o TCU concluiu que Lula pode ficar com a peça, já que o entendimento dado pelo Acórdão 2.255/2016 não poderia ser aplicado retroativamente. A justificativa estaria presente em um parecer do Tribunal obtido pelo jornal.
O AFP Checamos entrou em contato com a assessoria de imprensa da Casa Civil e com a assessoria de imprensa do TCU em 8 de julho de 2024, mas não pôde consultar o documento.
Segundo o TCU, o tema foi tratado no TC 032.365/2023-3, porém “não há decisão do Tribunal ou documentos públicos no momento” e as peças do processo tampouco foram divulgadas pela Secretaria de Comunicação do TCU.
Referências
- Entrevista original de Lula em 4 de março de 2016
- Texto do TCU sobre a incorporação de presentes recebidos por ex-presidentes ao acervo público
- Acórdão 2.255/2016 do TCU
- Decreto nº 4.344/2002
- Lei 8.394/1991
- Matéria do Poder360
- Acórdão 177/2019 do TCU
- Acórdão 1.577/2020 do TCU
- Matérias sobre o relógio não declarado por Lula (1, 2, 3)
- Matéria do jornal O Estado de S. Paulo sobre decisão do TCU envolvendo o relógio