Decreto que institui o Programa Terra da Gente não acaba com propriedade privada no campo

  • Publicado em 22 de abril de 2024 às 20:58
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  • Por AFP Brasil
Em 15 de abril de 2024, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) assinou o decreto nº 11.995, instituindo o Programa Terra da Gente. Desde então, mensagens compartilhadas mais de 3 mil vezes nas redes sociais alegam que tal medida “acaba com a propriedade privada” de imóveis rurais, que serão tomados pelo governo para a reforma agrária. Isso é falso: o decreto não dispõe sobre o fim da propriedade privada, e tampouco teria força legal para tal. O objetivo, segundo especialistas, é justamente organizar formas legais de obtenção de terras para reforma agrária que vão além da desapropriação.

O Lula acaba de assinar um decreto instituindo o programa terra da gente. Este programa vai favorecer o MST e acabar com a propriedade privada”, começa o texto que circula em uma publicação no X

E a forma de se obter esses imóveis é por desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária, ou seja, se for para favorecer o MST é só dizer que o imóvel é para desapropriação por interesse da reforma agrária e o seu imóvel , comprado com seu dinheiro será deles!!!”, continua a mensagem.

O conteúdo também é compartilhado no Facebook e no Instagram.

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Captura de tela feita em 18 de abril de 2024 de uma publicação no X (.)

As publicações são acompanhadas de uma captura de tela do Decreto nº 11.995, de 15 de abril de 2024, que institui o Programa Terra da Gente e trata da incorporação de imóveis rurais para a política nacional de reforma agrária.

A medida, porém, não cita em nenhum momento o fim da propriedade privada, princípio previsto na Constituição Federal e que, portanto, somente poderia ser alterado por meio de uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC).

O decreto tem a função de dar maior clareza e detalhamento a uma lei, portanto, não pode existir decreto sem que esteja regulamentando uma lei”, explicou à AFP Pedro Puttini Mendes, advogado fundador da P&M advocacia e professor de Direito Agrário e Ambiental na Fundação Instituto de Administração (FIA).

No caso do decreto em questão, é informado no início do texto que ele tem como referências as leis nº 4.504, de 30 de novembro de 1964 (Estatuto da Terra), nº 8.629, de 25 de fevereiro de 1993 e nº 13.001, de 20 de junho de 2014.

Lista de possibilidades para além da desapropriação 

A desapropriação é um processo pelo qual o Estado toma para si um bem privado, mediante o pagamento de uma indenização ao proprietário. Esta é uma das maneiras utilizadas pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) para a obtenção de terras.

É diferente, por exemplo, de um processo de expropriação, que é causado por um ato ilícito do proprietário, e no qual não há o pagamento de indenização pela propriedade. Prevista pela Constituição Federal, a expropriação pode ocorrer em propriedades rurais e urbanas onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas ou a exploração de trabalho escravo.

O decreto 11.995/2024, na verdade, lista uma série de possibilidades para a obtenção de terras destinadas à política de reforma agrária, que vão além da desapropriação ou expropriação. Essas possibilidades são elencadas no Artigo 4º e incluem: compra e venda, doação, arrematação de imóveis rurais penhorados, dentre outras.

Além disso, o decreto explicita que os casos de desapropriação por interesse social irão ocorrer nos termos de leis já existentes.

O novo decreto não ampliou o procedimento chamado de ‘desapropriação’, que permanece previsto pela Lei da Reforma Agrária (Lei Federal nº 8.629/1993), Estatuto da Terra (Lei Federal nº 4.504/1964), seus decretos regulamentares e normativas infralegais”, afirmou Puttini.

Esse decreto não é uma ameaça à propriedade da terra e nem cria formas para aumentar desapropriações. Como o próprio texto afirma, [ele tem como finalidade] ‘dispor sobre as alternativas legais para a aquisição e a disponibilização de terras para a reforma agrária’”, reforçou Sérgio Sauer, professor da Faculdade UnB Planaltina e pesquisador em temas agrários, ao AFP Checamos.

O docente também pontuou que um decreto não teria força legal para criar novas formas de obtenção de terras para a reforma agrária que já não fossem previstas em lei.

O objetivo é ‘sistematizar’ diversas possibilidades de obtenção (já previstas em outros instrumentos legais), direcionando para os programas de reforma agrária”, resumiu.

De maneira semelhante, o advogado, pesquisador em Ciência e Desenvolvimento Socioambiental e docente da Universidade Federal do Pará (UFPA) José Heder Benatti definiu a função do decreto como organizacional:

O decreto “tenta, dentro do governo federal, organizar as possibilidades de uso dos instrumentos já existentes. Então ele não traz nada de novo nesse aspecto de criar um novo instrumento, uma nova política, uma nova lei, porque o decreto não tem essa capacidade”.

Procurado pelo AFP Checamos, o Incra também afirmou que o Programa Terra da Gente “organiza diversas formas de obtenção e destinação de terras (...). Assim, o Governo Federal passa a ter um mapeamento detalhado com tamanho, localização e alternativas de obtenção de áreas que podem ser destinadas à reforma agrária”.

O Incra não toma a terra do fazendeiro. Na desapropriação, a autarquia paga uma indenização ao proprietário em valores de mercado, aferidos pela vistoria de avaliação”, acrescentou, em nota, o órgão. “As benfeitorias (edificações, cercas, pastos, etc.) são pagas em dinheiro. Os recursos para as indenizações vêm do orçamento do Incra”.

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