Flávio Dino não afirmou seguir orientações do “Decálogo de Lenin” em entrevista de 2015
- Publicado em 25 de março de 2024 às 14:46
- 4 minutos de leitura
- Por AFP Brasil
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“Palavras do Flávio Dino sobre o Comunismo e Socialismo, seguindo as orientações dos 10 mandamentos do Lenin. Assiste esse vídeo e tire suas conclusões”, diz uma das publicações compartilhadas no Facebook, no Instagram, no TikTok e no X.
O vídeo também foi enviado ao WhatsApp do AFP Checamos, para onde os usuários podem encaminhar conteúdos vistos em redes sociais, se duvidarem da sua veracidade.
Na sequência viral, o atual ministro do STF Flávio Dino afirma: “Em primeiro lugar, é preciso você ser coerente. E eu sou uma pessoa coerente com meus princípios, com meus valores e com as minhas ideias. Em segundo lugar, obviamente, como um socialista, comunista, marxista, eu faço aquilo que Lenin recomendava”.
Em seguida, ouve-se um narrador lendo trechos de uma obra identificada como “O Decálogo”, atribuída no vídeo ao teórico político e líder russo Vladimir Lenin.
Na suposta obra, são listadas orientações como “infiltre e depois controle todos os veículos de comunicação em massa”, “divida a população em grupos antagônicos” e “fale sempre em democracia e em Estado de direito mas, tão logo haja oportunidade, assuma o poder sem nenhum escrúpulo”.
Contudo, em nenhum momento do vídeo original Flávio Dino cita o texto “O Decálogo”, que incitaria a “tomada do poder”.
Entrevista de 2015
Uma busca reversa por fragmentos da sequência no Google levou à publicação no YouTube, em 15 de abril de 2015, de uma entrevista de Flávio Dino — à época, governador do Maranhão pelo PCdoB — concedida ao programa Espaço Público, na TV Brasil.
Na conversa, aos 28 minutos, Dino é questionado sobre como a agenda comunista pode atender demandas da população em um contexto capitalista. Em resposta, ele discursa sobre ser coerente, e completa: “Eu faço aquilo que Lenin recomendava: análise concreta da situação concreta”.
Mas Dino não faz qualquer menção ao “Decálogo”, ou aos “mandamentos” citados na sequência viral. Em vez disso, o então governador do Maranhão indica como uma de suas orientações a “defesa dos interesses dos pobres e dos excluídos”, ao mesmo tempo em que afirma saber lidar com “o Mercado”.
Sem registro de “O Decálogo”
Também não há registro de que o suposto livro “O Decálogo” tenha sido escrito pelo teórico russo Vladimir Lenin.
O professor de História Contemporânea da Universidade de São Paulo (USP) e especialista em história da Rússia Angelo de Oliveira Segrillo indicou à AFP em 19 de março de 2024 que “não existe nenhuma obra de Lenin chamada ‘Decálogo’”.
Em consonância, o professor de História Contemporânea da Universidade Federal Fluminense (UFF) e especialista nas revoluções socialistas do século XX, Daniel Aarão Reis, explicou à AFP em 20 de março de 2024 que a suposta obra “é um texto apócrifo, que circula há décadas pelo mundo”.
Segundo Reis, o conteúdo, que, nas suas palavras, alimenta preconceitos, “não tem nenhum fundamento em qualquer edição das obras de Lenin”. “Também não se fundamenta em nenhuma investigação séria de escritos do líder revolucionário russo, em qualquer tipo de suporte”, completou.
Menções aos supostos “10 mandamentos de Lenin” podem ser encontradas em reportagens norte-americanas de janeiro de 1983 (1, 2), quando o então presidente republicano Ronald Reagan citou-os em uma coletiva de imprensa e, após ser questionado, ignorou os pedidos pela fonte da informação. Nas matérias, o conteúdo é descrito como uma “ficção de origem incerta frequentemente encontrada em escritos conservadores”.
A presença das “regras comunistas” em materiais políticos também foi documentada em uma publicação de 10 de julho de 1970 no The New York Times, que menciona a recorrência da “fraude” por “um quarto de século” entre “organizações da extrema direita e anticomunistas”, rastreando a aparição mais antiga do boato a um boletim norte-americano de 1946.
Segundo a reportagem, além de não existirem indicações concretas de sua origem, nenhuma cópia ou registro do texto original foi encontrado em repositórios do país. A matéria também descreve que pesquisas exaustivas pelo documento, assim como um testemunho do então diretor do FBI (a polícia federal norte-americana), J. Edgar Hoover, revelaram-no “completamente ilegítimo”.
Este conteúdo também foi checado pelo Estadão Verifica e UOL Confere.
Referências
- Entrevista de Flávio Dino à TV Brasil em 15 de abril de 2015
- Perfil de Angelo de Oliveira Segrillo
- Perfil de Daniel Aarão Reis
- Matérias de 1983 sobre os “Dez Mandamentos de Lenin” (1, 2)
- Matéria de 1970 do The New York Times