O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, durante uma coletiva de imprensa em Brasília, em 30 de março de 2023 ( AFP / Sergio Lima)

“Patrimonialismo” é confundido com “patrimônio” em fala de Haddad sobre reforma tributária

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  • Publicado em 18 de julho de 2023 às 20:07
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  • Por AFP Brasil
O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, não falou que a reforma tributária irá afetar o patrimônio da população quando citou um “golpe no patrimonialismo brasileiro” durante entrevista em 12 de julho de 2023. Publicações compartilhadas centenas de vezes desde então confundem esse conceito sociológico com o termo “patrimônio”, alegando que o ministro teria dito que a reforma irá interferir nas economias pessoais dos cidadãos. Mas “patrimonialismo” refere-se à confusão entre público e privado, como explicaram a pasta e um especialista à AFP.

“Entenderam o que ele quer, ele quer acabar com o patrimônio das pessoas que construíram seu seu patrimônio com o suor do próprio rosto…”, diz uma das publicações compartilhadas no Twitter, acompanhada de uma manchete: “Haddad: ‘Reforma tributária representa oportunidade histórica para dar golpe no patrimonialismo brasileiro’”.

O conteúdo circula também no Facebook, no TikTok e no Kwai.

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Captura de tela feita em 14 de julho de 2023 de uma publicação no Twitter ( .)

O conteúdo circula em meio à discussão sobre a reforma tributária, que irá simplificar o sistema de impostos no país. O projeto foi aprovado na Câmara e segue para avaliação no Senado.

Registros de imprensa mostram que o ministro proferiu a declaração em 12 de julho de 2023, após uma reunião com os parlamentares relatores da proposta no Senado e na Câmara (1, 2), afirmando que a reforma tributária “vai ser um golpe duro no patrimonialismo brasileiro”.

Mas, ao contrário do que indicam as publicações nas redes sociais, “patrimonialismo” não tem relação com o patrimônio da população, ou seja, com suas economias pessoais.

O que é patrimonialismo?

Em linhas gerais, o termo “patrimonialismo” significa a falta de separação entre o que é público e o que é privado. Alvaro Martim Guedes, especialista em administração pública da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp), resumiu o conceito à AFP da seguinte forma:

Trata-se de um conceito da sociologia cujas origens são atribuídas ao alemão Max Weber (1864-1920). Já no Brasil, o docente explica que o termo é associado ao jurista Raymundo Faoro (1925-2003), autor da obra “Os donos do poder”.

A partir das ideias de Weber, Faoro desenvolveu o conceito dentro da realidade nacional, identificando uma forte concentração de poder na elite brasileira que fazia com que a esfera pública atendesse a interesses de uma parte da sociedade, e não ao bem coletivo.

“O ministro Haddad, ao mencionar o patrimonialismo brasileiro, se referia ao conceito sociológico e histórico no Brasil, no qual as noções de esfera pública e privada se misturam, com consequências danosas para a administração pública”, afirmou a assessoria especial de Comunicação Social do Ministério da Fazenda ao AFP Checamos, em 14 de julho, reforçando: “A fala não tem nenhuma relação com o patrimônio ou poupanças pessoais da população”.

Alvaro Martim Guedes também não vê, na fala do ministro, relação com o patrimônio individual dos cidadãos e acrescentou que enxerga essa confusão de conceitos como uma “distorção intencional” da fala de Haddad: “Não tem sentido, é uma distorção rústica, tosca”.

Consultado sobre se a reforma tributária poderia interferir com o patrimônio dos brasileiros, o especialista disse que, em sua análise, caso aprovada, a proposta fará justamente o contrário: “Ao permitir um processo tributário de maior equidade e potencialmente menos regressivo, [leva] ao fortalecimento principalmente daqueles que hoje dispõem de parcela significativa da sua renda para contribuições de impostos e de tributos”.

Então, qual o significado da fala de Haddad?

Com base no significado do conceito, compreende-se que o ministro quis dizer que, na sua visão, a reforma tributária vai encerrar, ou diminuir, o favorecimento de certos grupos econômicos que hoje seriam beneficiados pelas atuais regras fiscais.

Haddad já usou o termo em outras ocasiões. Ao comentar o novo arcabouço fiscal, em 30 de março, por exemplo, o ministro disse que a proposta iria abordar “setores que estão muito beneficiados” ou que sequer são regulamentados, completando:

“Esse é um item de uma lista extensa de benefícios indevidos, de fraudes, de todo tipo de coisa que vocês possam imaginar, que vão ser revistas para fechar os ralos do que a gente chama de patrimonialismo brasileiro”.

O AFP Checamos já verificou anteriormente outras publicações que distorciam conceitos técnicos.

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