Documento ministerial que anuncia a suspensão da internet na França é falso

A morte do jovem francês Nahel M., de 17 anos, baleado pela polícia em 27 de junho de 2023, provocou protestos na França. Nesse contexto, um suposto comunicado do Ministério do Interior francês foi compartilhado milhares de vezes nas redes sociais desde 2 de julho anunciando restrições do acesso à internet em alguns bairros. Mas a mensagem é falsa, afirmou o governo, e especialistas disseram à AFP que tais cortes seriam ilegais e tecnicamente impossíveis de serem aplicados no país.

“Urgente: A França está planejando desligar a internet do país na tentativa de impedir que o mundo veja o que invasores estão fazendo com a nação”, diz a legenda de uma publicação no Instagram, acompanhada da imagem de um suposto comunicado do governo francês.

A alegação circula no Telegram, no Facebook, no TikTok, no Twitter e no Kwai.

O documento também foi compartilhado em publicações em francês, espanhol e árabe.

A suposta nota ministerial, com data de 2 de julho, diz: “A partir de 3 de julho e por um período determinado, restrições temporárias ao acesso à internet serão aplicadas em alguns bairros específicos durante a noite. Estas restrições visam prevenir o uso abusivo de redes sociais e plataformas online para coordenar ações ilegais e incitar a violência”.

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Captura de tela feita em 6 de julho de 2023 de uma publicação no Instagram ( .)

A imagem começou a circular em meio aos protestos que acontecem no país depois da morte de Nahel M. O jovem de 17 anos foi baleado por um policial no último dia 27 de junho durante uma blitz em Nanterre, 15 quilômetros a oeste de Paris, quando não obedeceu às ordens dos agentes no local.

O caso reacendeu o debate recorrente sobre violência policial. Desde então, delegacias, escolas e prefeituras foram incendiadas em mais de 200 cidades francesas, lojas foram saqueadas e projéteis foram lançados contra as forças de segurança.

Ao todo, 3.486 pessoas foram detidas, 12.202 veículos foram queimados, 1.105 prédios e 209 postos de polícia foram danificados, segundo um balanço de 4 de julho do Ministério do Interior.

Contudo, o documento viral que anuncia o “desligamento” da internet é falso. Além disso, em julho de 2023, seria impossível adotar tal medida na França, tanto técnica quanto legalmente, de acordo com especialistas consultados pela AFP.

Inconsistências do documento

Vários elementos lançam dúvidas sobre a autenticidade do documento compartilhado pelos usuários: para começar, a autoridade que supostamente o publicou não é clara.

Na parte superior esquerda da nota, é possível ver o selo do Ministério do Interior, mas no canto inferior esquerdo do documento aparece o nome da Direção-Geral da Polícia Nacional, que, embora faça parte do ministério, não consta com selo próprio na nota.

O endereço de e-mail que aparece no texto, por sua vez, é encontrado em documentos destinados à comunicação dos primeiros-ministros franceses, como se pode verificar por meio de uma busca avançada no Google.

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Captura de tela feita em 6 de julho de 2023 de uma publicação no Twitter ( .)

No site da Polícia Nacional francesa, a declaração não aparece entre as notícias recentes, consultadas até 6 de julho. O último comunicado, publicado em 30 de junho, fala sobre os protestos, mas para informar sobre treinamentos práticos para a “desescalada da violência”, voltados para políticos.

No site do Ministério do Interior, em 6 de julho, os últimos comunicados de imprensa publicados datam de 28 de junho e fazem referência aos atos violentos, mas nenhum deles é o documento compartilhado pelos usuários.

A pasta negou a autoria de tal declaração em um tuíte em 2 de julho. “Este documento é FALSO: nenhuma decisão foi tomada a esse respeito”, diz a mensagem.

Já a Polícia Nacional publicou uma mensagem em seu perfil do Facebook negando igualmente a autoria da nota viral: “Circula nas redes sociais um falso comunicado de imprensa da Polícia Nacional anunciando restrições ao acesso à internet em determinados bairros a partir de 3 de julho. Não compartilhe para evitar ‘fake news’”.

Procurado pela AFP, o ministério não se pronunciou sobre o assunto, apenas mencionou o tuíte.

Tecnicamente impossível

O complexo acesso à internet na França torna a tal suspensão tecnicamente inviável”, explicou à AFP Jean-Philippe Gaulier, presidente do Observatório de Sistemas de Informação e Segurança de Redes (OSSIR) e diretor-geral da empresa de segurança digital Cyberzen.

“Temos duas formas de acesso à internet: uma que chamamos de ‘a cabo’, com fibra ou ADSL, e o acesso por telefone, por meio das tecnologias 4G e 5G. Então, se quiséssemos proibir o acesso a um bairro, seria necessário parar os pontos de acesso ADSL e de fibra e os conectores de antena naquele espaço. Isso significa que todos os operadores teriam de ser obrigados a parar as antenas e o tráfego proveniente dos pontos físicos de acesso”, o que seria “inviável”, esclareceu Gaulier.

O especialista destacou que suspender as conexões à internet significaria também interromper o acesso a determinados serviços públicos online, incluindo hospitais e delegacias de polícia dentro do perímetro da alegada restrição, o que poderia ser “contraproducente”.

Na França, como em muitos países do mundo, existem pontos de troca de tráfego (IXP, na sigla em inglês) de internet, muito numerosos e que permitem conexões em todo o território. Assim, controlar ou limitar o acesso à internet seria muito mais complexo do que em outros locais onde os pontos de acesso são únicos, ou escassos, como é o caso da China e da Turquia.

Por isso, em alguns países com regimes autoritários, o acesso à internet pode ser restrito localmente, “filtrando” as informações dos pontos de acesso, disse Bastien Le Querrec, advogado da Quadrature du Net, associação de defesa e promoção de direitos e liberdades na internet.

Medida ilegal na França

“Na França, o governo não controla o acesso à internet” e, mesmo que tomasse uma decisão sobre isso, seria “indiscutivelmente ilegal”, detalhou Vincent Varet, advogado associado do Varet Près Killy, escritório de advocacia especializado em direito imaterial, digital e esportivo.

“Atualmente a lei francesa não autoriza o desligamento da internet”, confirmou Bastien Le Querrec.

A lei francesa prevê censura “altamente selecionada” nas redes sociais, especificamente para publicações de natureza terrorista ou pedopornográfica, sobretudo, mas não visa proibir o acesso à internet, ou a uma rede social, mas sim remover conteúdos específicos que vão contra a lei, explicou Le Querrec.

As redes sociais e o governo francês

Desde o início dos protestos, o governo francês criticou que nas redes sociais haja “uma forma de mimetismo da violência” e pediu às plataformas que “organizem a remoção dos conteúdos mais sensíveis”.

Na sexta-feira, 30 de junho, ocorreu um encontro entre o ministro do Interior, Gérald Darmanin, o da Transição Digital e Telecomunicações, Jean-Noël Barrot, e as plataformas digitais. “Os ministros lembraram às plataformas a sua responsabilidade na divulgação destas publicações”, diz o comunicado de imprensa divulgado após esta reunião.

Os ministros pediram, ainda, que as plataformas se comprometam a “eliminar urgentemente mensagens assim que reportadas e a identificar os usuários das redes sociais que participem da prática de infracções, e a responder rapidamente aos pedidos das administrações administrativa e judicial”.

O governo pode considerar a suspensão de algumas funções nas redes sociais, como a geolocalização, em caso de novos distúrbios, mas não tem intenção de realizar um “apagão geral” das plataformas, disse o porta-voz do governo francês, Olivier Veran, em 5 de julho de 2023, para esclarecer declarações feitas na véspera pelo mandatário Emmanuel Macron a prefeitos de municípios afetados pelos motins.

“Devemos refletir sobre o uso dessas redes entre os mais novos, nas famílias, na escola, sobre as proibições que devemos adotar”, destacou Macron.

Na última quarta-feira, a delegação ministerial francesa do setor digital comunicou à AFP que milhares de conteúdos ilegais, como atos de violência e divulgação de informações pessoais de policiais, foram removidos das redes sociais.

Referências

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