Começar o banho pelos pés e beber água antes de dormir não reduzem as chances de parada cardíaca
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- Publicado em 22 de junho de 2022 às 18:24
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- Por AFP Espanha, AFP Brasil
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“Por que os infartos ocorrem com mais frequência no banheiro?? As pessoas não devem começar molhando cabeça a cabeça e os cabelos durante o banho porque essa é uma sequência inversa. Isso faz com que o corpo tente ajustar sua temperatura muito rapidamente por causa de nossa condição de sangue quente”, começa o texto compartilhado no Facebook (1, 2) e Twitter (1, 2), detalhando qual seria a sequência “correta” para tomar banho e, assim, evitar ataques cardíacos
Versões que circulavam anteriormente (1, 2) eram ilustradas com uma foto do que parece ser um coração com bolhas. Publicações com uma lista de conselhos semelhantes viralizaram também em espanhol.
Banho e ataque cardíaco
De acordo com a mensagem viralizada, ao tomar banho nessa sequência “incorreta”, o sangue “aumenta sua velocidade para chegar à cabeça mais rapidamente para compensar a diferença de temperatura que pode eventualmente causar rompimento de vasos, capilares, artérias e conseqüentemente um infarto ou quedas”.
Assim, a publicação recomenda que as pessoas iniciem o banho molhando “os pés, as pernas gradativamente até os ombros e por último a cabeça”.
Entre os conselhos da Fundação Espanhola do Coração, do site especializado em saúde MedlinePlus e do Hospital Israelita Albert Einstein, não há qualquer referência ao fato de o banheiro ser um local mais propício para que as pessoas sofram infartos, ou que a ordem das partes do corpo lavadas seja determinante.
Para prevenir infartos, ou problemas cardiovasculares, os conselhos mais comuns são: controlar a pressão arterial, cuidar da alimentação e evitar o sobrepeso, fazer exercício físico, não fumar, descansar o suficiente e controlar o estresse.
Especialistas consultados pela equipe de checagem da AFP, por sua vez, descartaram que as afirmações do texto viralizado tenham fundamento científico.
O cardiologista espanhol Alfonso Valle assinalou que não há evidência “sobre nenhum benefício na ordem” no momento de tomar banho, embora tenha esclarecido: “Se molharmos primeiro as extremidades inferiores há o estímulo de um pequeno fechamento da circulação venosa e melhora o retorno” sanguíneo, o que “nos permite manter uma tensão adequada”.
Além disso, para o especialista “não tem sentido” a afirmação de que podem ser rompidos “vasos capilares, artérias” se no banho o que se molha primeiro é a parte superior do corpo.
O cardiologista uruguaio Alejandro Cuesta concordou com Valle que a afirmação sobre uma ordem correta para tomar banho não tem fundamento. “Como conceito geral me parece que estão confundindo [no texto] a questão da síncope [um desmaio, ou enjoo] com a de infarto/morte”, comentou.
Em resposta ao AFP Checamos em 2020, o então diretor científico da Sociedade Paranaense de Cardiologia (SPC), Miguel Morita, falou no mesmo sentido a respeito de uma suposta “sequência correta” no momento de tomar banho:
“Não existem dados científicos que recomendem” molhar primeiro os pés e as pernas, assinalou igualmente o cardiologista filipino Rafael Castillo, integrante da direção da Sociedade Internacional de Hipertensão (ISH, na sigla em inglês), em um artigo de 2017 se referindo a uma mensagem em inglês similar à viralizada.
Castillo adverte, contudo, que pessoas “com um histórico de problemas cardíacos deveriam usar água morna e evitar ficar muito tempo tomando banho”.
“Para a maioria de nós, sem problemas de saúde importantes, nosso corpo tem um excelente mecanismo compensatório para fazer os ajustes necessários diante das mudanças de temperatura”, acrescentou.
Ocorrem mais infartos no banheiro?
Cuesta afirmou “nunca” ter escutado que no banheiro aconteçam mais infartos do que em outros espaços das casas.
“O que realmente ocorre mais no banheiro são as síncopes por diversos mecanismos”, comentou o cardiologista uruguaio, dando como exemplos: “urinar, mobilizar o intestino, banho com água muito quente, muito tempo de pé em frente ao espelho, estímulo da carótida ao se barbear etc”, destacando que são “perdas de conhecimento rápida e totalmente reversíveis, não infartos, nem mortes”.
“Em muitas ocasiões, não é o banheiro, mas o esforço intestinal para defecar que pode levar a um ataque do coração no banho”, concorda o médico filipino em seu artigo, no qual afirma que, por isso, “a constipação crônica está relacionada a um maior risco de eventos cardiovasculares”.
Outro fator que causa danos cerebrais no banheiro, segundo o mesmo cardiologista, são os escorregões de pessoas de idade avançada, que batem a cabeça ao cair.
Morita também indicou que não existem dados que comprovem uma maior incidência de infartos no banheiro. “O que foi demonstrado é uma variação circadiana no risco de infarto - o infarto ocorre mais no período da manhã”.
E continuou: “As mudanças na fisiologia cardiovascular em resposta a diferentes temperaturas regionais do corpo são mínimas e nos defendemos muito bem delas. Mesmo que ocorressem ‘vasos quebrados, capilares e artérias’ - isto é sem fundamento -, o efeito seria somente em vasos da pele, mas que fique claro que isto não acontece mesmo na pele, sem nenhum efeito no coração”.
Pressão arterial e frequência cardíaca
No conteúdo viral há referência a supostos dados de saúde, como tabelas sobre pressão arterial, frequência cardíaca e temperatura corporal.
Na pressão arterial, a mensagem informa que 120/80 é normal , 140/90 alto e 150/95 muito alto.
Páginas de saúde como a Mayo Clinic ou Healthline fornecem intervalos mais precisos, que, embora aproximados, não coincidem exatamente com os dados da publicação viral.
Quanto à frequência cardíaca, a publicação estabelece como "normal" a faixa de 60 a 80 batimentos por minuto. Os sites consultados consideram que em adultos a frequência cardíaca em repouso deve estar entre 60 e 100 batimentos por minuto, embora o valor possa variar no caso de atividade esportiva regular, por exemplo.
A afirmação da mensagem viral sobre a febre sustenta que esta se dá a partir de "37,5 F". De acordo com publicações médicas, a temperatura do corpo humano varia de acordo com o local onde é aferida (nas axilas ou na boca) e também com a hora do dia, distinguindo-se também febre e febre baixa (alguns décimos acima a temperatura habitual), mas em geral, considera-se febre a partir de 37,2 °C pela manhã e 37,7 °C à tarde.
Água antes de dormir não previne derrames ou ataques cardíacos
A postagem viral termina com recomendações sobre o consumo de água na hora “correta” para ajudar a “ativar os órgãos internos”. Uma das sugestões diz: “1 xícara de água. Antes de dormir ajuda a evitar derrame ou ataque cardíaco”.
O departamento de imprensa da Sociedade Espanhola de Neurologia (SEN) explicou à AFP como ocorre um derrame ou "derrame hemorrágico": "Algum vaso sanguíneo no cérebro se rompe e ocorre um sangramento".
Segundo o SEN, a "hidratação adequada" é um dos principais pontos, "embora não seja o único" para uma boa saúde vascular: "Se bebermos apenas um copo de água à noite não estaremos devidamente hidratados, nem por si só o consumo de água (em qualquer momento) prevenirá doenças vasculares ou eliminará qualquer risco vascular”.
Existem estudos científicos sobre os benefícios da água potável para reduzir a possibilidade de ataques cardíacos, e manter-se bem hidratado está incluído nas recomendações gerais para a saúde do coração.
Sobre a afirmação no texto viral de beber água antes de dormir ou antes de tomar banho para “baixar a pressão arterial”, o cardiologista Cuesta explicou que “nenhuma das duas coisas tem base científica nem está em nenhum guia ou diretriz de prática médica”. Beber água é bom “especialmente para a proteção dos rins”, mas isso é “estar bem hidratado em geral, não um copo de água em um determinado momento”, disse à AFP.
Em relação à recomendação de beber água 30 minutos antes de comer por "facilitar a digestão", o nutricionista espanhol Óscar Picazo negou à AFP que essa ação, por si só, possa favorecer ou dificultar "a digestão devido à questão de diluir os ácidos do estômago”.
“Tem sido visto em alguns estudos que pode ajudar a reduzir um pouco o que você come” se você beber água antes de comer, porque “te dá uma sensação de saciedade”, segundo o nutricionista.
A médica especialista em nutrição Mónica Katz, presidente da Sociedade Argentina de Nutrição (SAN), destacou que o fundamental “e com evidência científica para se tornar uma recomendação é a importância da água para a nossa saúde”: "A água é essencial para a nossa sobrevivência".
A médica destacou que “a desidratação pode afetar a pressão arterial, fazendo com que ela aumente ou diminua”, mas não enfatizou a existência de horários mais adequados do que outros para a ingestão de líquidos.
Portanto, nem a ordem em que o banho é tomado é relevante para a saúde, nem há evidências científicas de que mais ataques cardíacos ocorrem durante o banho. Especialistas alertam que os banheiros são locais úmidos onde o calor pode aumentar o risco de desmaio, mas não de ataque cardíaco ou morte. Além disso, embora beber água seja importante para sua saúde, tomar um copo de água antes de dormir não necessariamente previne ataques cardíacos ou derrames.