
O autor das máximas "Não se pode" não é Lincoln, mas um reverendo presbiteriano dos EUA
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- Publicado em 10 de dezembro de 2021 às 14:08
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- Por Manuela SILVA, AFP Uruguai, AFP Brasil
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“A prosperidade não pode ser alcançada desencorajando a poupança. Você não pode aumentar o assalariado destruindo quem o contrata. A fraternidade dos homens não pode ser promovida incitando os ouvidos das classes”, continua o texto supostamente escrito por Lincoln, publicado em diferentes formatos e extensões no Facebook (1, 2, 3), no Instagram (1, 2, 3) e no Twitter (1, 2, 3).
“Você não pode construir o caráter eliminando a iniciativa e a independência das pessoas. Você não pode ajudar as pessoas permanentemente, fazendo por elas o que elas podem e devem fazer por si mesmas”, terminam as publicações, que também circulam em francês, inglês e espanhol, além de estarem online em blogs desde 2008.

Abraham Lincoln foi o 16º presidente dos Estados Unidos, exercendo o seu mandato de 4 de março de 1861 até a sua morte por assassinato, em 15 de abril de 1865.
Diversas buscas no Google por trechos da suposta citação de Lincoln em português, inglês e espanhol não levaram a nenhum registro em sites oficiais dedicados ao ex-presidente nem a páginas de instituições educacionais ou políticas.
Tampouco foram encontrados resultados em uma pesquisa no The Collected Works of Abraham Lincoln (As obras completas de Abraham Lincoln), um site publicado pela Associação Abraham Lincoln que reúne, em formato digital, vários volumes de correspondências, discursos e outros escritos do ex-mandatário norte-americano.
No entanto, a busca levou a uma seção onde são listados cronologicamente os escritos para os quais não foram encontrados textos, as falsificações e os elementos espúrios ou duvidosos atribuídos a Lincoln. Entre eles está o texto “Dez coisas que você não pode fazer”, que contém “citações falsas como ‘A prosperidade não pode ser alcançada desencorajando a poupança’”.
Sem evidência
Historiadores norte-americanos especializados em Lincoln descartaram, em declarações à equipe de checagem da AFP, que o político tenha proferido as frases em questão.
O historiador Edward Steers Jr. explicou que as sentenças são conhecidas como “The American Charter” (“O estatuto norte-americano”, em tradução livre para o português), um decálogo escrito pelo reverendo William J. H. Boetcker (1873-1962).
Por e-mail à AFP, o especialista em Lincoln contou que em 1916, 51 anos após a morte do político, Boetcker publicou um panfleto intitulado “Lincoln sobre a pobreza” e colocou as palavras do ex-presidente sobre esse tema de um lado e os dez pontos do “The American Charter”, do outro.
“Em algum momento o nome de Boetcker foi retirado e parecia que Lincoln era o autor dos dez pontos”, mas ele não os escreveu “e Boetcker nunca alegou que o tivesse feito”, acrescentou o especialista, que também conta essa história em seu livro “Lincoln Legends”.
O especialista Joshua Claybourn, que concordou com a data e autor dos dizeres, assinalou à AFP que “não há evidências que indiquem que essa citação teve origem com Abraham Lincoln”. Além disso, mencionou que, posteriormente, um Comitê para o Governo Constitucional dos Estados Unidos distribuiu folhetos com citações de Boetcker, entre elas os “Ten Cannots” (“Os dez não pode”), e outro de Lincoln.
Para Christian McWhirter, historiador especializado da Biblioteca e Museu Presidencial Abraham Lincoln, “esta série de declarações é comumente atribuída de forma errônea a Abraham Lincoln”, embora não haja provas disso, manifestou à equipe de checagem da AFP.
“O primeiro uso conhecido, e provavelmente a fonte original, é o ministro presbiteriano antitrabalhista William J.H. Boetcker”, acrescentou.
Consultado pela AFP, o especialista em Lincoln David J. Kent concordou que “não são palavras” do ex-presidente dos Estados Unidos.
A historiadora Stacy McDermott falou no mesmo sentido de que as frases “não soam como as dele”.

Contínuas atribuições errôneas
Em contato com a AFP, os historiadores Steers e Claybourn lembraram que em 1992, 76 anos após a publicação do decálogo de Boetcker, o político norte-americano Ronald Reagan, ex-presidente dos Estados Unidos (1981-1989), leu os dez pontos em uma Convenção Nacional.
“Supostamente faziam parte do Credo Republicano criado por Abraham Lincoln”, disse Steers. “Foi uma atribuição errada” que, “infelizmente, outros continuaram a se referir desde então”, acrescentou Claybourn.