Para especialistas, cláusula do Mercosul evocada por Dilma em 2016 não é comparável a sanções dos EUA em 2025

  • Publicado em 15 de setembro de 2025 às 17:28
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  • Por AFP Brasil
Em abril de 2016, em entrevistas coletivas em Nova York, a então presidente Dilma Rousseff classificou seu processo de impeachment como “golpe” e cogitou acionar a cláusula democrática do Mercosul e da Unasul. Desde 7 de setembro de 2025, conteúdos que já ultrapassam 280 mil visualizações nas redes sociais alegam que, naquele momento, Rousseff teria “convocado a imprensa para pedir sanções contra o Brasil”. Mas isso é enganoso: para especialistas, evocar os mecanismos desses blocos não é comparável às sanções norte-americanas aplicadas unilateralmente em 2025.

“Em 2016, Dilma estava em Nova York, convocou a imprensa e pediu sanções contra o Brasil pois havia um ‘golpe de estado’ contra ela”, diz uma das publicações que circulam no Facebook. O conteúdo também é compartilhado no X, no TikTok e no Kwai.

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Captura de tela feita em 12 de setembro de 2025 de uma publicação no Facebook (.)

A alegação repercutiu nas redes sociais após um discurso feito pelo pastor evangélico Silas Malafaia, que participou de um ato a favor do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) em 7 de setembro. Durante a manifestação, o líder religioso citou a ida do deputado federal licenciado Eduardo Bolsonaro (PL-SP) para os Estados Unidos e afirmou:

“Tem gente da imprensa que tem amnésia, mas eu não tenho. [...] Em 2016, Dilma, em Nova York, convocou a imprensa e pediu sanções contra o Brasil. Vou repetir: Dilma, em Nova York, vai procurar a imprensa, em 2016, em entrevista coletiva, pediu sanções contra o Brasil porque havia em curso um golpe contra ela.”

Malafaia também publicou o trecho do discurso em suas redes sociais (1, 2, 3).

A fala de Malafaia faz referência ao fato de que, segundo um relatório da Polícia Federal (PF), Eduardo Bolsonaro teria atuado nos Estados Unidos junto ao governo do presidente Donald Trump para que o republicano aplicasse sanções econômicas contra o Brasil como forma de retaliação ao julgamento de Jair Bolsonaro, pai de Eduardo, pelo Judiciário brasileiro.

Entrevista de 2016

Em abril de 2016, a então presidente Dilma Rousseff participou de uma cerimônia da Assinatura do Acordo de Paris na Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova York. Na ocasião, a ex-mandatária concedeu entrevistas coletivas à imprensa nacional e internacional, que estão disponíveis nos arquivos da Presidência da República (1, 2).

Nessas entrevistas, Rousseff falou sobre o processo de impeachment pelo qual passava seu governo, e classificou tal processo como um “golpe”

A palavra “sanção” não é citada pela ex-mandatária em momento algum nas entrevistas. No entanto, Rousseff falou sobre a possibilidade de uso da cláusula democrática do Mercosul e da Unasul para que os demais países dos blocos avaliassem se o processo de destituição descumpria princípios democráticos. Isso porque ambas as organizações preveem que a ordem democrática é um requisito para ingressar e permanecer no bloco (1, 2).

No caso do Mercosul, essa condição é prevista no chamado “Protocolo de Ushuaia”, que foi promulgado internamente no Brasil por meio do Decreto 4.210, de 2002. Posteriormente, o tema também foi reforçado no Protocolo de Montevidéu sobre Compromisso com a Democracia no Mercosul (Ushuaia II).

Esses protocolos estabelecem que, no caso de ruptura democrática em um dos Estados-membros do Mercosul, os demais países promoverão consultas entre si e com o Estado afetado, que incluem a criação de comissões de apoio e mesas de diálogo entre atores políticos, econômicos e sociais do país em questão.

Caso esses esforços não sejam suficientes para restabelecer a ordem democrática, o Estado-membro fica sujeito a diversos tipos de punições, que incluem a suspensão do bloco e a adoção de sanções políticas e diplomáticas adicionais.

O artigo 4 do Protocolo de Ushuaia II também prevê que o processo de colaboração entre os países do bloco para o restabelecimento da ordem democrática pode ser iniciado pelo governo de qualquer um dos Estados-membros, caso este acredite que esteja em curso uma ameaça à ordem democrática.

Na entrevista coletiva de 22 de maio de 2016, Dilma Rousseff afirmou acreditar que seu governo estava sofrendo um golpe e, portanto, que gostaria de pedir que o Mercosul e a Unasul avaliassem a questão.

Questionada diretamente se estava pedindo que o Brasil fosse expulso do Mercosul, a então presidente reforçou: “Não. A cláusula democrática implica numa avaliação da questão”.

“A Dilma não estava pedindo sanções contra o Brasil, ela estava pedindo que o nível da democracia fosse avaliado pelo bloco”, entende Clarissa Franzoi, professora de Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). “Ela não dá os caminhos que essas organizações deveriam seguir. Ela fala, ‘olha, a gente precisa fazer consultas’. É exatamente isso que o Protocolo de Ushuaia prevê”.

Segundo a docente, em última instância, Rousseff pedia a aplicação da legislação, já que o Brasil concordou com a cláusula democrática ao ingressar no Mercosul. Trata-se de uma situação oposta à observada em 2025, em sua visão:

“Agora, se pede o afastamento da legislação brasileira, e esse pedido é feito atacando a separação dos poderes e atacando a autonomia do Supremo Tribunal Federal”.

A avaliação de Mateus Silveira, advogado e professor de Direito Constitucional, é semelhante. “A analogia do requerimento de sanções para o Brasil pode ser feita politicamente sem compromisso com a análise completa dos fatos e de uma forma mais retórica”, afirma.

“Contudo são situações completamente diferentes, uma vez que o Brasil é membro do Mercosul, assinou o protocolo, se submeteu às regras do Mercosul e, de forma soberana, internalizou o acordo, sabe das suas consequências, bem como tem instâncias para discutir essas consequências antes de serem aplicadas.” 

E complementa: “Agora a situação com os EUA é algo completamente atípico, fora das regras internacionais e dos princípios da ONU da não intervenção nos assuntos internos, autodeterminação dos povos, proibição de ameaça e independência política. Portanto, se configuram em ‘sanções’ não diplomáticas e completamente ofensivas às regras de direito internacional e do comércio internacional da OMC”.

Referências

  • Entrevistas de Dilma Rousseff em abril de 2016 (1, 2)
  • Protocolos do Mercosul e da Unasul (1, 2)

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